O obscurantismo do século 21
Movimentos antivacinas, negação das mudanças
no clima, terraplanistas. Tais retrocessos vêm da
confusão entre o que é opinião e o que é fato.
Por Salvador Nogueira
O obscurantismo do século 21 é um
fenômeno global. Para alguns arautos da
irracionalidade, aliás, a palavra “global” nem faz
sentido. É o caso dos terraplanistas, que seguem colecionando adeptos. Em outubro de 2018, um
grupo de “pesquisadores” terraplanistas foi recebido
por deputados estaduais na Assembleia Legislativa
de Mato Grosso do Sul, onde ganharam uma
homenagem por seus “estudos” sobre a forma do
nosso planeta.
O terraplanismo é folclórico. Rende risadas.
Mas o fato de sandices como essa ganharem
popularidade não tem a menor graça. Por duas
razões. Primeiro porque trata-se de um sintoma de
que parte significativa da população viva hoje
desconhece fatos objetivos sobre o mundo – como a
Lei da Gravitação, que os terraplanistas dizem ser
uma farsa. Segundo, porque estamos descobrindo
que quase ninguém sabe distinguir fatos de opiniões
– você simplesmente não pode ter uma “opinião”
sobre o formato da Terra ou sobre a existência da
gravidade. Isso pertence ao reino dos fatos. O pior,
de qualquer forma, é que isso definitivamente não se
aplica só a conceitos como o formato da Terra.
Uma pesquisa do Pew Research Center, feita
em 2018, entrevistou 5.035 americanos adultos
selecionados aleatoriamente pela internet. Tudo que
eles tinham de fazer era ler dez frases simples e
apontar se eram afirmações factuais ou opiniões.
Apenas 26% foram capazes de apontar corretamente
as cinco factuais e só 35% conseguiram identificar
corretamente as cinco que eram opinativas.
Resumindo a ópera, três em cada quatro americanos
não sabem separar fato de opinião. Poucos
acreditariam que no Brasil a situação seja muito
melhor. E isso explica muita coisa. Ou você nunca
ouviu alguém dizer por aí, pelas redes sociais,
quando encurralado pelos fatos, que “essa é a minha
opinião”, como forma de encerrar um debate?
A partir do momento em que as pessoas se
sentem à vontade para desconectar suas opiniões
dos fatos objetivos, temos um problema grave. A
Terra plana é entretenimento, mas e o movimento
antivacinas? A Europa viu um aumento de 400% no
número de casos de sarampo em um ano – de 5.273
em 2016 para 21.315 em 2017.
E mesmo quando defensores do movimento
antivacinas são confrontados com esses números, e
com a explicação clara de como vacinas funcionam e
de como simplesmente não há evidência de que elas
possam causar os males que se atribuem a elas,
ainda assim eles podem se esconder por trás de
teorias conspiratórias sobre a “malévola indústria
farmacêutica”. E, claro, quando não houver outro
recurso, parte-se para um “mas essa é a minha
opinião”. Eita.
Ao longo do progresso fantástico realizado
pela humanidade durante o século 20, fomos nos
esquecendo do que era a vida antes que a ciência entrasse para valer no nosso cotidiano. Sem vacinas
e antibióticos, a mortalidade infantil era altíssima.
Durante o século 19, ela era de 30%; a cada três
crianças nascidas, uma morria antes de completar
cinco anos. Na Alemanha chegava a 50%.
Então a ciência entrou em cena, com três
contribuições essenciais: a percepção de que
saneamento básico era essencial para evitar
infecções, o desenvolvimento dos antibióticos e a
criação das vacinas. O ser humano passou milhares
de anos tentando proteger sua prole com rezas, chás
e superstições de todo tipo, mas o que deu certo foi
entender como as doenças funcionam e combatê-las
com armas eficazes.
Ao longo do século 20, pela primeira vez na
história, vimos um declínio acentuado na mortalidade
infantil. Em 2015, ela era, em termos globais, de
4,3%. Ou seja, a cada cem crianças, apenas quatro
morriam antes de completar 5 anos. E isso numa
média tirada do mundo inteiro. No Brasil, no mesmo
ano, era só de 1,7%. Na Suécia, dado de 2014, 0,3%.
Outro tema adorado pela turma do “mas essa
é a minha opinião” é a mudança climática. Pouco
importa que a Nasa e quem mais for apresente fartas
evidências do aquecimento global. Pouco importa que
os registros de temperaturas, feitos com termômetros
(pouco afeitos a ideologias), apontem que a
temperatura média do planeta já subiu 0,9°C entre
1880 e 2017. Pouco importa que 17 dos 18 anos mais
quentes nos 138 anos de registros tenham acontecido
depois de 2001, ou que 2016 tenha sido o ano mais
quente de todos os registros. O sujeito espera a
primeira brisa gelada soprar para dizer “cadê o
aquecimento global?”. É dramático, e se trata de um
problema que está ganhando proporções cada vez
maiores. Não é mais o seu primo doido no WhatsApp.
É o Ministro das Relações Exteriores que atribui às
medições feitas pela Agência Espacial dos Estados
Unidos o status de “complô ambientalista globalista
esquerdista sei-lá-mais-o-que-ista”.
O SUS gasta US$ 17 bi por ano com homeopatia,
aromaterapia, bioenergética, florais – práticas
com zero evidência de eficácia
Da mesma forma, vemos o descalabro nas
políticas de saúde. Basta lembrar a quantidade de
dinheiro que o SUS (Sistema Único de Saúde) gasta
em “práticas alternativas”, também conhecidas como
“tratamentos sem qualquer evidência de eficácia”. É
homeopatia, acupuntura, aromaterapia, bioenergética,
cromoterapia, florais; tudo pago com dinheiro público.
Em 2017, foram R$ 17,2 bilhões nisso.
É o tal negócio: o sujeito pode acreditar no
que quiser. É direito dele. Mas ninguém pode aplicar
crenças pessoais no âmbito da gestão pública. E
estamos chegando num ponto em que agentes
públicos se sentem à vontade para ditar políticas de
acordo com premissas completamente
desconectadas da realidade objetiva. Tudo não
passaria de um escândalo embaraçoso, não fosse um
detalhe: essas atitudes nunca tiveram tanto apoio
popular.
Como é possível? Hoje, qualquer um de nós
tem mais informação disponível nas mãos, com um
celular e uma conexão 4G, do que tinha o presidente
dos Estados Unidos na Casa Branca nos anos 1960.
É um disparate imaginar que, diante do tamanho
poderio tecnológico de que dispomos, estejamos
ficando, na média, cada vez mais desinformados e
ignorantes. No entanto, é verdade.
E só vamos desarmar essa arapuca se
encontrarmos uma base comum de fatos objetivos
com os quais todo mundo possa concordar. Essa
base só pode ser uma: a ciência. E não porque ela
seja moralmente ou ideologicamente superior. Mas
porque ela se aceita como falível. Porque está
fundamentada na dúvida, não na certeza. E a certeza
inabalável, imune aos fatos, é o caminho mais curto
para o retrocesso
(Adaptado de: NOGUEIRA, Salvador. Superinteressante, 3 jan.
2019. Disponível em:< https://super.abril.com.br/opiniao/o-obscurantismo-do-seculo-21/>. Acesso em: 23 fev. 2019.)
Com base no estudo apresentado por Savioli & Fiorin
(2006, p. 60), “há procedimentos linguísticos que
servem para demonstrar diferentes vozes no texto”.
Segundo os autores, há alguns recursos que podem
auxiliar na identificação dessas vozes. A respeito
desses procedimentos, considere os seguintes itens:
I. Discurso indireto livre
II. Verossimilhança
III. Discurso direto
IV. Discurso indireto
V. Coesão e coerência
VI. Imitação por subversão e imitação por
captação
VII. Intencionalidade e aceitabilidade
Com base nos itens apresentados, assinale a
alternativa que apresenta os recursos que ilustram as
ideias dos autores: