- ID
- 4884007
- Banca
- IMA
- Órgão
- Prefeitura de Pastos Bons - MA
- Ano
- 2019
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
Não é próprio falar sobre os alunos...
1 Gosto de ouvir conversas. Mania de psicanalista. É que nas conversas moram mundos diferentes do meu. Thomas Mann,
no seu livro José do Egito, conta de um diálogo entre José e o mercador que o comprara para vendê-lo como escravo, no
Egito: “Estamos a um metro de distância um do outro. E, no entanto, ao seu redor gira um universo do qual o centro és tu e
não eu. E ao meu redor gira um universo do qual o centro sou eu, e não tu.”
2 Fascinam-me esses universos que me tangenciam e que, no entanto, estão distantes de mim. Gosto de ouvir conversas
para viajar por outros mundos. Por vários anos eu viajei diariamente de trem, de Campinas para Rio Claro, onde eu era
professor na antiga Faculdade de Filosofia. No mesmo vagão viajavam também muitos professores a caminho das escolas
onde trabalhavam. Iam juntos, alegres e falantes... Por anos escutei o que falavam. Falavam sempre sobre as escolas. Era ao
redor delas que giravam os seus universos. Falavam sobre diretores, colegas, salários, reuniões, relatórios, férias, programas,
provas. Mas nunca, nunca mesmo, eu os ouvi falar sobre os seus alunos. Parece que no universo em que viviam não havia
alunos, embora houvesse escolas. Se não falavam sobre alunos é porque os alunos não tinham importância.
3 Participei da banca que examinou uma tese de doutorado cujo tema eram os livros em que, nas escolas, são registradas as
reuniões de diretores e professores. A candidata se dera ao trabalho de examinar tais reuniões para saber sobre o que falavam
diretores e professores. As coisas registradas eram as coisas importantes que mereciam ser guardadas para a posteridade. Nos
livros estavam registradas discussões sobre leis, portarias, relatórios, assuntos administrativos e burocráticos, eventos, festas.
Mas não havia registros de coisas relativas aos alunos. Os alunos, aqueles para os quais as escolas foram criadas, para os
quais diretores e professoras existem, ausentes. Não, não era bem assim: os alunos estavam presentes quando se constituíam
em perturbações da ordem administrativa. Os alunos, meninos e meninas, alegres, brincalhões, curiosos, querendo aprender,
alunos como companheiros dessa brincadeira que se chama ensinar e aprender –– sobre tais alunos o silêncio era total.
4 Essa ausência do aluno –– não do aluno a quem o discurso administrativo das escolas se refere como “o perfil dos nossos
alunos”, nem esse nem aquele, todos, aluno abstrato –– não esse mas aquele aluno de rosto inconfundível e nome único: esse
aluno de carne e osso que é a razão de ser das escolas. Ah, é importante nunca se esquecer disso: alunos não são unidades
bio-psicológicas móveis sobre os quais devem-se gravar os mesmos saberes, não importando que sejam meninos nas praias
do Nordeste, nas montanhas de Minas, às margens do Amazonas, ou nas favelas do Rio. Os alunos são crianças de carne e
osso que sofrem, riem, gostam de brincar, têm o direito de ter alegrias no presente, e não vão à escola para serem
transformados em unidades produtivas no futuro. E é essa ausência desse aluno de carne e osso que está progressivamente
marcando os universos que giram em torno da escola. Os professores não falam sobre os alunos.
5 Na verdade, não é próprio que os professores falem com entusiasmo e alegria sobre os alunos. Os alunos não são tema de
suas conversas. Acontece nas escolas primárias (ainda escrevo do jeito antigo porque não acredito que a mudança de nomes
mude a realidade...). Mas não só nelas. Lembro-me de uma brincadeira séria que corria entre os professores de uma de nossas
universidades mais respeitadas. Diziam os professores que, para que a dita universidade fosse perfeita, só faltava uma coisa:
acabar com os alunos... Brincadeira? Psicanalista não acredita na inocência das brincadeiras.
6 Com isso concordam os critérios de avaliação dos docentes, impostos pelos órgãos governamentais: o que se computa,
para fins de avaliação de um docente, não são as suas atividades docentes, relação com os alunos, mas a publicação de artigos
em revistas indexadas internacionais. O que esses critérios estão dizendo aos professores é o seguinte: “Vocês valem os
artigos que publicam: publish or perish”!
7 Num universo assim definido pelo discurso dos burocratas o aluno, esse aluno em particular, cujo pensamento é obrigação
do professor provocar e educar, se constitui num empecilho à atividade que realmente importa. Os raros professores que têm
prazer e se dedicam aos seus alunos estão perdendo o tempo precioso que poderiam dedicar aos seus artigos. “Aquele que é
um verdadeiro professor toma a sério somente as coisas que estão relacionadas com os seus estudantes – inclusive a si mesmo”
(Nietzsche). Eu sonho com o dia em que os professores, em suas conversas, falarão menos sobre os programas e as pesquisas
e terão mais prazer em falar sobre os seus alunos.
Extraído de:
http://www.aedmoodle.ufpa.br/pluginfile.php?file=%2F212282%2Fmod_resource%2Fcontent%2F1%2FDesejodeEnsinarB
log.pd
Além do autor demonstrar um certo distanciamento da
temática aluno por parte dos professores e outros
profissionais de educação, o mesmo caracteriza a
seguinte ausência: