Cidade Maravilhosa?
Os camelôs são pais de famílias bem
pobres, e, então, merecem nossa simpatia e nosso
carinho; logo eles se multiplicam por 1000. Aqui em
frente à minha casa, na Praça General Osório, existe
há muito tempo a feira hippie. Artistas e artesãos
expõem ali aos domingos e vendem suas coisas.
Uma feira um tanto organizada demais: sempre os
mesmos artistas mostrando coisas quase sempre
sem interesse. Sempre achei que deveria haver um
canto em que qualquer artista pudesse vender um
quadro; qualquer artista ou mesmo qualquer pessoa,
sem alvarás nem licenças. Enfim, o fato é que a feira
funcionava, muita gente comprava coisas – tudo
bem. Pois de repente, de um lado e outro, na Rua
Visconde de Pirajá, apareceram barracas
atravancando as calçadas, vendendo de tudo -
roupas, louças, frutas, miudezas, brinquedos, objetos
usados, ampolas de óleo de bronzear, passarinhos,
pipocas, aspirinas, sorvetes, canivetes. E as praias
foram invadidas por 1000 vendedores. Na rua e na
areia, uma orgia de cães. Nunca vi tantos cães no
Rio, e presumo que muita gente anda com eles para
se defender de assaltantes. O resultado é uma
sujeira múltipla, que exige cuidado do pedestre para
não pisar naquelas coisas. E aquelas coisas secam,
viram poeira, unem-se a cascas de frutas podres e
dejetos de toda ordem, e restos de peixes da feira
das terças, e folhas, e cusparadas, e jornais velhos;
uma poeira dos três reinos da natureza e de todas as
servidões humanas.
Ah, se venta um pouco o noroeste, logo ela
vai-se elevar, essa poeira, girando no ar, entrar em
nosso pulmão numa lufada de ar quente.
Antigamente a gente fugia para a praia, para o mar.
Agora há gente demais, a praia está excessivamente
cheia. Está bem, está bem, o mar, o mar é do povo,
como a praça é do condor – mas podia haver menos
cães e bolas e pranchas e barcos e camelôs e ratos
de praia e assaltantes que trabalham até dentro
d’água, com um canivete na barriga alheia, e sujeitos
que carregam caixas de isopor e anunciam sorvetes
e, quando o inocente cidadão pede picolé de manga,
eis que ele abre a caixa e de lá puxa a arma. Cada
dia inventam um golpe novo: a juventude é muito
criativa, e os assaltantes são quase sempre muito
jovens.
Rubem Braga
O termo destacado é um recurso textual endofórico,
EXCETO em: