TEXTO
O Tempo
Rubem Alves
Há duas formas de marcar o tempo. Uma delas foi inventada por homens que amam a precisão dos números, matemáticos,
astrônomos, cientistas, técnicos. Para marcar o tempo de forma precisa, eles fabricaram ampulhetas, relógios, cronômetros, calendários.
Nesses artefatos técnicos, todos os pedaços do tempo – segundos, minutos, dias, anos – são feitos de uma mesma substância: números,
entidades matemáticas. Não há inícios nem fins, apenas a indiferente sucessão de momentos, que nada dizem sobre alegrias e
sofrimentos. Apenas um bolso vazio. Nele, a alma não encontra morada.
Nas Olimpíadas, a performance dos corredores e nadadores é medida até os centésimos. Fico a me perguntar: “Como é que
conseguem? Que diferença faz?”.
A outra foi inventada por homens que sabem que a vida não pode ser medida com calendários e relógios. A vida só pode ser
marcada com a vida. Os amantes do Cântico dos Cânticos marcavam o tempo do amor pelos frutos maduros que pendiam das árvores.
Quando as folhas dos plátanos ficam amarelas sabemos que o outono chegou. Os ipês-rosas e amarelos anunciam o inverno.
Qual a magia que informa os ipês, todos eles, em lugares muito diferentes, que é hora de perder as folhas e florescer? E sem
misturar as cores. Primeiro os rosas, depois os amarelos e, finalmente, os brancos.
Sugeri que algum compositor compusesse uma sinfonia ou uma brincadeira musical em três movimentos. Primeiro movimento,
“Ipê-rosa”, andante tranquilo, em que os violoncelos cantam a paz e a segurança. Segundo movimento, “Ipê-amarelo”, rondo vivace, em
que os metais, cores parecidas com a dos ipês, fazem soar a exuberância da vida. Terceiro movimento, “Ipê-branco”, moderato, em que
o veludo dos oboés canta a mansidão. Seria bom se nós, como os ipês, nos abríssemos para o amor no inverno.
A precisão dos números marca o tempo das máquinas e do dinheiro. O tempo do amor se marca com o corpo.
Um calendário é coisa precisa: anos, meses, dias, horas, que são marcados com números. Esses números medem o tempo.
Mas os pedaços de tempo são bolsos vazios: nada há dentro deles. O bolso vazio do tempo se torna parte do nosso corpo quando o
enchemos com vida. Aí o tempo não mais pode ser representado por números. O tempo aparece como um fruto que vai sendo comido:
é belo, é colorido, é perfumado. E, à medida que vai sendo comido, vai acabando. Vem a tristeza. O tempo da vida se marca por alegrias
e tristezas. Há inícios e há fins.
Tempus fugit; o tempo foge. Portanto, carpe diem: colha o dia como um fruto que amanhã estará podre.
Viver ao ritmo de alegrias e tristezas é ser sábio. “Sapio”, no latim, quer dizer, “eu saboreio”. O sábio é um degustador da vida.
A vida não é para ser medida. Ela é para ser saboreada.
Um texto bíblico diz: “Ensina-nos a contar os nossos dias de tal maneira que alcancemos um coração sábio”. Acho que Jesus
sorriria se eu acrescentasse ao “Pai-Nosso” outra súplica: “A fruta nossa de cada dia dá-nos hoje…”. Caqui, pitanga, morango à beira do
abismo, melancia…
Heráclito foi um filósofo grego fascinado pelo tempo. Contemplava o rio e via que tudo é rio. Percebeu que não é possível entrar
duas vezes no mesmo rio; na segunda vez, as águas serão outras, o primeiro rio já não existirá. Tudo é água que flui: as montanhas, as
casas, as pedras, as árvores, os animais, os filhos, o corpo… Assim é tudo, assim é a vida: tempo que flui sem parar. Daquilo que ele
supostamente escreveu, restam apenas fragmentos enigmáticos. Dentre eles, um me encanta: “Tempo é criança brincando, jogando; da
criança o reinado”.
Para nós, o tempo é um velho, cada vez mais velho, sobre quem se acumulam os anos que passam e de quem a vida foge.
Heráclito, ao contrário, diz que o tempo é criança, início permanente, movimento circular, o fim que volta sempre ao início, fonte
de juventude eterna, possibilidade de novo começos.
Tempo é criança? O que o filósofo queria dizer exatamente eu não sei. Mas sei que as crianças odeiam Chronos, o deus dos
cronômetros, dos segundos, dos centésimos de segundos O relógio é o tempo do dever: corpo engaiolado.
Disponível em https://www.revistaecosdapaz.com/o-tempo-uma-cronica-encantadora-de-rubem-alves/.
Um gênero textual pode ser composto por várias tipologias,
desde que elas sejam necessárias para cumprir o objetivo
comunicativo em questão. O texto de Rubem Alves, por
exemplo, é composto por tipologias textuais diferentes. A esse
propósito, analise o trecho a seguir:
“Há duas formas de marcar o tempo. Uma delas foi inventada
por homens que amam a precisão dos números, matemáticos,
astrônomos, cientistas, técnicos. Para marcar o tempo de
forma precisa, eles fabricaram ampulhetas, relógios,
cronômetros, calendários. Nesses artefatos técnicos, todos os
pedaços do tempo – segundos, minutos, dias, anos – são
feitos de uma mesma substância: números, entidades
matemáticas”.
Sobre o trecho analisado, é correto afirmar que a tipologia
textual predominante é a