UM QUARTO DE RAPAZ
Elsie Lessa
Abro as venezianas na alegria do sol desta
manhã e só não ponho a mão na cabeça porque,
afinal das contas, o correr dos anos nos dá uma
certa filosofia. Essa rapaziada parece que é mesmo
toda assim.
Quem sai para uma prova de matemática
não há mesmo de ter deixado a cama feita, tanto
mais quando ficou lendo Carlos Drummond de
Andrade até às tantas, como prova este Poesia até
agora, rubro de vergonha de ter sido largado no
chão junto a este cinzeiro transbordante e às meias
azuis de náilon. E dizer que desde que esse menino
nasceu tento provar-lhe que já não estamos – hélas!
– no tempo da escravidão e que somos nós
mesmos, brancos, pretos ou amarelos, intelectuais
ou estudantes em provas, que devemos encaminhar
ao destino conveniente as roupas da véspera. Qual,
ele não se convence. Também uma manta escocesa,
de suaves lãs macias, que a mãe da gente trouxe
embaixo do braço da Inglaterra até aqui, para que
nos aqueça nas noites de inverno, não devia ser
largada no chão, nem mesmo na companhia de um
livro de versos. E quem é que está ligando para
tudo isso?
Ó mocidade inquieta, só mesmo o que está
em ordem dentro deste quarto são os montes de
discos. E estes livros, meu Deus? Como é que
gente que gosta de ler pode deixar os próprios
livros numa bagunça dessas? Coitado do Pablo
Neruda, olha onde foi parar! E o Dom Quixote de
la Mancha, Virgem Santíssima! Há três gerações
que os antepassados desse menino não fazem outra
coisa senão escrever livros, e ele os trata assim!
− Livro é pra ler! Não é para enfeitar
estante!
− Está certo! Que não enfeite, mas também
não precisam ser empurrados desse jeito, lá para o
fundo, com esse monte de revistas de jazz em
cima! E custava, criatura, custava você pendurar
essas calças nesse guarda-roupa que é para você,
sozinho, que é provido de cabides, que não têm
outro destino senão abrigar as suas calças?
− Mania de ordem é complexo de culpa, já
te avisei! Meu quarto está ótimo, está formidável. E
não gosto que mexa, hein, senão depois não acho as
minhas coisas!
E pensar que esse menino um dia casa e vai
levar essas noções de arrumação para a infeliz da
esposa, e que juízo, que juízo vai fazer essa moça
de mim, meu Deus do céu! Há bem uns quinze
anos que esse problema me atormenta, tenho
trocado confidências com amigas e há várias opiniões a respeito. Umas acham que um dia dá um
estalo de Padre Vieira na cabeça desses moleques e
passam a pendurar a roupa, tirar pó de livro,
desamarrar o sapato antes de tirar do pé.
Pode ser. Deus permita! Mas que agonia,
enquanto isso não acontece.
Dizer que peregrinei por antiquários para
descobrir nobres jacarandás, de boa estirpe, que o
rodeassem em todas as suas horas, que lhe
infundissem o gosto das coisas belas. Qual!
Pendurei a balada do “If”1
em cima de todos esses
discos de jazz, e sobre a vitrola, já nem sei por quê,
esse belo retrato de Napoleão, em esmalte, vindo
das margens do Sena! E ele está se importando? O
violão está sem cordas, e em cima do meu retrato,
radioso retrato da minha juventude, ele já pôs o
Billy Eckstine, a Sarah Vaughan, a Ava Gardner de
biquíni e duas namoradas ora descartadas! E não
tira um, antes de colocar o outro! Vai empurrando
por cima e já a moldura estoura com essa variedade
de predileções! São Sebastião, na sua peanha
dourada, está de olhos erguidos para o alto e,
felizmente, não vê a desordem que anda cá por
baixo.
Vejo eu, olho em roda para saber por onde
começar. Custava ele despejar esses cinzeiros?
Onde já se viu fumar na cama e fazer furos nos
meus lençóis? E, em tempos de provas, é hora de
ficar folheando livros de versos, até tarde da noite,
desse jeito? O caderno de física está assim de
poesias e letras de fox e caricaturas de colegas, não
sei também se de algum professor! E para que seis
caixas de fósforo em cima dessa vitrola? E onde já
se viu misturar na mesma mesa esse nunca assaz
manuseado Manuel Bandeira, e El son entero, de
Nicolás Guillén, e os poemas de Mário de Andrade,
e os Pássaros Perdidos de Tagore, e Fernando
Pessoa, e esse pocket book policial? Quer ler
Graham Greene, e fazer versos, e fumar feito um
desesperado, e não perder praia no Arpoador, nem
broto na vizinhança, nem filme na semana e passar
nas provas. E em que mundo isso é possível?
Guardo os chinelos, que ficam sempre
emborcados. Já lhe disse que isso é atraso de vida.
E ele morre de rir. E ponho as cobertas em cima da
cama. E abro as janelas, para sair esse cheiro de
fumo. E deixo só uma caixa de fósforos. Mas não
faço mais nada, porque abri um caderno, de letra
muito ruim, até a metade com os seus versos.
1 Poema célebre do escritor indiano Rudyard Kipling (1865-
1936), Prêmio Nobel de Literatura de 1907.
OBS.: O texto foi adaptado às regras do Novo
Acordo Ortográfico.
Dizer que peregrinei por antiquários para
descobrir nobres jacarandás, de boa estirpe, que o
rodeassem em todas as suas horas, que lhe
infundissem o gosto das coisas belas. Qual!
Pendurei a balada do “If”em cima de todos esses
discos de jazz, e sobre a vitrola, já nem sei por quê,
esse belo retrato de Napoleão, em esmalte, vindo
das margens do Sena!
No tocante à tipologia textual, pode-se considerar
que o fragmento acima