- ID
- 4881187
- Banca
- MS CONCURSOS
- Órgão
- Prefeitura de Taquaral - SP
- Ano
- 2016
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
O colocador de pronomes
(fragmento)
(...)
Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três
anos. Magro. Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos dados à luz no
“Itaoquense”, com bastante sucesso.
Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais
moça do coronel Triburtino, o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete, e a do Carmo,
encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada.
Triburtino não era homem de brincadeira. Esguelara um vereador oposicionista em plena sessão da câmara
e desd’aí se transformou no tutú da terra. Toda gente lhe tinha um vago medo; mas o amor, que é mais forte que a
morte, não receia sobrecenhos enfarruscados nem tufos de cabelos no nariz.
Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica que os separava. Namoro à moda
velha, já se vê, pois que nesse tempo não existia a gostorura dos cinemas. Encontros na igreja, à missa, troca de
olhares, diálogos de flores - o que havia de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a
entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na rua d’Ela, nos dia de folga. Depois, a serenata fatal
à esquina, com o
Acorda, donzela...
Sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho perfumado.
Aqui se estrepou...
Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora pontos exclamativos e reticências:
Anjo adorado!
Amo-lhe!
Para abrir o jogo bastava esse movimento de peão. Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho
celestial e, depois de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à sua presença, com disfarce de
pretexto - para umas certidõesinhas, explicou.
Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás da orelha.
Não lhe erravam os pressentimentos. Mas o pilhou portas aquém, o coronel trancou o escritório, fechou a
carranca e disse:
- A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei
nunca - nunca, ouviu? - que contra ela se cometa o menor deslize.
Parou. Abriu uma gaveta. Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o
- É sua esta peça de flagrante delito?
O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação.
- Muito bem! Continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então, minha filha e tem a audácia de o
declarar... Pois agora...
O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça e relanceou os olhos para a rua,
sondando uma retirada estratégica.
- ... é casar! Concluiu de improviso o vingativo pai.
O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois, tornando a si, comoveu-se e com
lágrimas nos olhos disse, gaguejante:
- Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade em peito humano! Agora vejo com que
injustiça o julgam aí fora!...
Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.
- Nada de frases, moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente noivo de minha filha!
E voltando-se para dentro, gritou:
- Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!
O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o erro.
- Laurinha, quer o coronel dizer...
O velho fechou de novo a carranca.
- Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-”lhe”. Se
amasse a ela deveria dezer amo-”te”.
Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, a qual não pode
ser senão a Maria do Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher...
- Oh, coronel...
- ...ou a preta Luzia, cozinheira. Escolha!
O escrevente, vencido, derrubou a cabeça com uma lágrima a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram
ambos, em pausa de tragédia. Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição da
gramática matrimonial.
- Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa - quem fala, e neste caso “vassuncê”; da Segunda
pessoa - a quem fala, e neste caso Laurinha; da terceira pessoa - de quem se fala, e neste caso do Carmo, minha
mulher ou a preta. Escolha!
Não havia fuga possível.
O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira da vida, torcendo acanhada a
ponta do avental. Viu também sobre a secretária uma garrucha com espoleta nova ao alcance do maquiavélico
pai, submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo as mãos, dizia teatralmente:
- Deus vos abençoe, meus filhos!
(Monteiro Lobato, http://www.passeiweb.com/estudos/livros/o_colocador_de_pronomes_conto)
Segundo o texto, o casamento se dá, por quê?