Texto III: O que é uma língua?
A padronização, a gramatização, a ortografização de uma língua têm constituído, em todos os momentos históricos, um processo
de seleção e, como todo processo de seleção, um processo simultâneo de exclusão. A centralização dos Estados nacionais a partir do
Renascimento em torno da figura do rei, símbolo da nacionalidade,
acarretou a construção política de uma língua nacional, de uma
língua oficial.
Ora, que critérios poderiam ser empregados para definir essa
língua oficial, essa língua que, de materna, se transformará em língua paterna, língua pátria, língua oficial? Em meio à diversidade
linguística que sempre caracterizou todos os países da Europa, que
língua ou que variedade de língua será arrancada de sua dinâmica
social para se transformar em monumento, em símbolo da identidade nacional?
Os critérios serão, sempre, de ordem política e nunca-jamais
de ordem “linguística”, no sentido de não haver possibilidade alguma de uma variedade ser escolhida por algum conjunto de características “inerentes” (beleza, elegância, riqueza, concisão etc.) que a
tornem “naturalmente” mais apta a ser eleita para o processo de
hipostasiação. A língua escolhida será sempre, nos casos das nações unificadas, a língua ou dialeto falado na região onde se situa o
poder, a Corte, a aristocracia, o rei.
A famosa Ordonnance de Villers-Cotterêts assinada em 6 de
setembro de 1539 pelo rei Francisco I, decreta que todo e qualquer
documento legal, contratos, sentenças, testamentos etc., “sejam pronunciados, registrados e entregues às partes em linguagem materna francesa, e não outramente”. Ora, essa “linguagem materna
francesa” é de uso extremamente minoritário no século XVI, e mesmo no final do XVIII, como veremos adiante, era desconhecida por
três quartos da população da França. Sua escolha como língua
oficial se deve ao mero fato de ser a língua materna do rei, o que é
razão suficiente para decretar sua oficialidade, apesar de sua reduzida difusão entre os súditos. Com isso, o que poderia parecer um
ato de democratização das relações entre o poder e os cidadãos –
a substituição do latim pelo francês nos atos oficiais – era, na verdade, uma reafirmação do caráter aristocrático daquele regime político
e se prendia ao simples fato de, àquela altura da história francesa, o
latim já ser uma língua desconhecida para a maioria dos membros
da elite política e cultural.
A língua ou variedade de língua eleita para ser oficial será
objeto de um trabalho de codificação, de padronização, trabalho
empreendido pelos gramáticos, e também de criação de um léxico
novo, amplo, que permita à língua ser instrumento da alta literatura,
da ciência, da religião e do direito.
Por conseguinte, e ao contrário do que comumente (e lamentavelmente) se lê em textos assinados por (socio)linguistas – num
discurso que se repete também nos livros didáticos de português,
supostamente “atualizados” com os avanços da ciência linguística –, a
norma-padrão definitivamente não é uma das muitas variedades
linguísticas que existem na sociedade. Não existe uma variedadepadrão (aliás, uma contradição em termos, pois se é padrão, isto é,
uniforme e invariante, como pode ser uma “variedade”?), nem um
dialeto-padrão, nem uma língua padrão, embora esses termos
pululem na bibliografia dedicada ao tema. O que existe é uma norma-padrão, língua materna de ninguém, língua paterna por excelência, língua da Lei, uma norma no sentido mais jurídico do termo.
Marcos Bagno
“O que é uma língua? Imaginário, ciência e hipóstase” In: LAGARES, X. C.; BAGNO, M.
Políticas da norma e conflitos linguísticos. São Paulo: Parábola, 2011
Em “Ora, que critérios poderiam ser empregados para definir
essa língua oficial, essa língua que, de materna, se transformará em língua paterna, língua pátria, língua oficial?”, a preposição em destaque assume o valor de: