Pais sem limites
A educação liberal é confortável para os pais.
Mas os filhos precisam saber o que são deveres e
obrigações
O avião estava cheio. Eu no fundão. Duas poltronas
atrás de mim, uma criança começou a chorar. Abriu
o berreiro. Ninguém disse uma palavra, fazer o que
quando uma criança chora? A mãe, em vez de
tentar acalmar o filho, reclamou em voz alta.
– Criança chora mesmo, e daí? Vocês ficam me
olhando, mas o que posso fazer? Criança é assim:
chora.
Tudo bem. Criança chora. Mas a gente ouve.
Ninguém havia reclamado do incômodo em voz
alta. Suponho que algumas pessoas tenham olhado
para a mãe como se pedindo que fizesse alguma
coisa. Em vez de acalmar o filho, ela brigou.
Sinceramente, nem olhar a gente pode? E mais
sinceramente ainda: como será a educação desse
menino, se a mãe prefere reclamar com quem se
sente incomodado com o choro, no lugar de
acalmar o filho? Vai ter noção de limite? Ou se
transformará num briguento, achando que tem
direito a tudo? No caso dos aviões, eu acho que há
uma irresponsabilidade enorme dos pais. Como
podem expor um bebê de colo a viagens aéreas?
Sim, existem os casos de extrema necessidade. Mas
não são a maioria. Um bebê sente dor nos ouvidos,
talvez até mais intensa que nós. Quando eu sinto,
tento mascar chiclete, chupar bala, ou pelo menos,
racionalmente, posso entender o que está
acontecendo e suportar. Um bebê não. De repente,
vem aquela dor horrível, ele não sabe o porquê.
Chora. Grita. Os outros passageiros têm de suportar
o barulho, ficam até com dor de cabeça. Mas um
bebê é um bebê, e todos temos de entender. E os
pais? Como obrigam a criança a suportar essa dor?
E os passageiros os gritos? Eu já vim da Turquia
certa vez, em uma viagem que durou o dia todo,
com duas crianças pequenas logo atrás de mim.
Classe executiva. Gritaram e choraram quase a viagem toda. E não têm razão? Como suportariam
passar o dia todo sentados, cintos afivelados? Os
pais eram pessoas simpáticas. Tinham ido a
turismo. É certo deixar os filhos presos um dia
inteiro? É justo enlouquecer os outros passageiros?
Claro que criança tem o direito de viajar. Mas é
preciso escolher o roteiro mais adequado.
Certa vez fui a uma pousada na serra carioca.
Deliciosa. Um diretor de cinema, mais tarde,
comentou:
– Eu ia sempre lá. Mas eu e minha mulher
cometemos um crime. Tivemos uma filha. Na
pousada não aceitam crianças.
É fato. Já existem hotéis e pousadas que não
hospedam crianças. Muita gente acha um horror.
Por outro lado, o problema não está nos pais? Em
qualquer lugar onde os pais estejam com os filhos,
agem como se eles tivessem direito a tudo. Podem
correr, gritar. Dá para ler um livro embaixo de uma
árvore, no alto da serra, com crianças correndo e
gritando? E com os pais apreciando a algazarra
tranquilamente, sem se importar com os outros
hóspedes?
Eu poderia citar outros exemplos. Visitas que
chegam com filhos que pulam no sofá. Ou brincam
com algum objeto de estimação. Que batem no
prato e dizem que não gostam da comida, em
restaurantes. (E com razão. Agora criança tem de
apreciar sashimi quando quer hambúrguer?) O
problema está nos pais.
Muitos foram reprimidos quando crianças. Antes
era assim: podia, não podia. A educação tradicional
impunha limites, às vezes de forma rígida. Eu
mesmo acredito que o excesso de rigidez é
péssimo. Por outro lado, essas crianças vão crescer,
e terão de viver com normas. A vida é cheia de isso
pode e aquilo não pode. O respeito ao outro implica
entender os próprios limites. Senão é aquilo: todo
mundo querendo furar fila, tirando vantagem. O
fato é que muitos dos pais modernos, como a
mulher que esbravejou no avião, acham que criança
pode tudo. Já conversei com professoras, segundo
as quais, hoje, boa parte dos pais delega a educação
básica dos filhos à escola. Há casos, extremos, em
que a professora tem de explicar a importância de
escovar os dentes todos os dias. Não estou falando
de famílias sem condições financeiras, no caso.
Mas também de gente bem de vida, para quem é
mais fácil não discutir deveres e obrigações com os
filhos. Deixar rolar.
Mas um dia os filhos terão de aprender a viver em
sociedade. Podem contar com a mãe ou o pai para
chorar as pitangas se forem demitidos. Um ombro
sempre é bom. Mas só terão empregos e
oportunidades se souberem o que são limites,
deveres, obrigações. A educação extremamente
liberal é atraente. Principalmente, porque
confortável para os pais. Mas fica a pergunta: se os
pais não dão noção de limites, como os filhos um
dia vão ter?
Carrasco, Walcyr. Pais sem limites. Disponível
em: http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/walcyr-carrasco/noticia/2015/09/pais-sem-limites.html.
Acesso em: 12 ago. 2016.
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