UM CÃO, APENAS
Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em
flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a
meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho
triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. É um triste cãozinho doente, com
todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse
lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço acaba
de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver
interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já
que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...
Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos
graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim,
como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir.
Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse,
encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era
preciso passar. E ele estava na minha frente inábil, como envergonhado de se achar tão
sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.
Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta
humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.
Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma
dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as
escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas,
salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão,
prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.
Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e
sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas
inumeráveis. Esteve ao meu alcance; talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; ameio, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim
humilhado, e tão digno, no entanto: como alguém que respeitosamente pede desculpas de
ter ocupado um lugar que não era seu.
Depois pensei que todos nós somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta.
E há o dono da casa, e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.
(Cecília Meireles. Janela mágica. São Paulo: Moderna, 1988.)
Entre as palavras e expressões destacadas no texto, estão listadas abaixo aquelas que se
referem ao cãozinho:
I. “Eu não lhe digo nada (...)”.
II. “Deixei-o partir, assim humilhado (...)”
III. “(...) um cãozinho triste interrompe seu sono (...)”.
IV. “Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade (...)”.
V. “Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse (...)”.
Os trechos em que as expressões negritadas referem-se apenas ao cãozinho são