As intermitências da morte
(Fragmento)
A morte conhece tudo a nosso respeito, e
talvez por isso seja triste. Se é certo que nunca sorri, é
só porque lhe faltam os lábios, e esta lição anatômica
nos diz que, ao contrário do que os vivos julgam, o
sorriso não é uma questão de dentes. Há quem diga,
com humor menos macabro que de mau gosto, que
ela leva afivelada uma espécie de sorriso
permanente, mas isso não é verdade, o que ela traz à
vista é um esgar de sofrimento, porque a recordação
do tempo em que tinha boca, e a boca língua, e a
língua saliva, a persegue continuamente. Com um
breve suspiro, puxou para si uma folha de papel e
começou a escrever a primeira carta deste dia, Cara
senhora, lamento comunicar-lhe que a sua vida
terminará no prazo irrevogável e improrrogável de
uma semana, desejo-lhe que aproveite o melhor que
puder o tempo que lhe resta, sua atenta servidora,
morte. Duzentas e noventa e oito folhas, duzentos e
noventa e oito sobrescritos, duzentas e noventa e oito
descargas na lista, não se poderá dizer que um
trabalho destes seja de matar, mas a verdade é que a
morte chegou ao fim exausta. Com o gesto da mão
direita que já lhe conhecemos fez desaparecer as
duzentas e noventa e oito cartas, depois, cruzando
sobre a mesa os magros braços, deixou descair a
cabeça sobre eles, não para dormir, porque morte
não dorme, mas para descansar. Quando meia hora
mais tarde, já refeita da fadiga, a levantou, a carta que
havia sido devolvida à procedência e outra vez
enviada, estava novamente ali, diante das suas
órbitas atônitas.
Se a morte havia sonhado com a esperança
de alguma surpresa que a viesse distrair dos
aborrecimentos da rotina, estava servida. [...] Entre ir
e vir, a carta não havia demorado mais que meia hora,
provavelmente muito menos, dado que já se
encontrava em cima da mesa quando a morte
levantou a cabeça do duro amparo dos antebraços,
isto é, do cúbito e do rádio, que para isso mesmo é
que são entrelaçados. Uma força alheia, misteriosa,
incompreensível, parecia opor-se à morte da pessoa,
apesar de a data da sua defunção estar fixada, como
para toda a gente, desde o próprio dia do nascimento.
É impossível, disse a morte à gadanha silenciosa,
ninguém no mundo ou fora dele teve alguma vez mais
poder do que eu. eu sou a morte, o resto é nada.
SARAMAGO, José. As intermitências da morte. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. p. 139-40.
“A morte conhece tudo a nosso respeito, e talvez por
ISSO seja triste."
O uso da forma destacada do demonstrativo, no
contexto, se justifica porque: