- ID
- 4178617
- Banca
- IPAD
- Órgão
- Prefeitura de Vitória de Santo Antão - PE
- Ano
- 2015
- Provas
- Disciplina
- Português
- Assuntos
(14 de março de 1885) (em Crônicas selecionadas: antologia, 2ª edição – São Paulo: Martin Claret, 2013.
(Coleção a obra-prima de cada autor; 279). Trata-se de texto escrito por Machado de Assis, jornalista, contista,
cronista, poeta, romancista e teatrólogo brasileiro.
Trago aqui no bolso um remédio contra os capoeiras. Nem tenho dúvida em dizer que é muito superior ao célebre
Xarope do Bosque, que fez curas admiráveis e até milagrosas, até princípios de 1856, decaindo em seguida,
como todas as coisas deste mundo. A minha droga pode dizer-se que tem em si o sinal da imortalidade.
Agora, principalmente, que a guarda urbana foi dissolvida, entregando ontem os refles, receiam alguns que haja
uma explosão de capoeiragem (só para os moer), enquanto que outros creem que a substituição da guarda é
bastante para fazer recuar os maus e tranquilizar os bons. Hão de perdoar-me: eu estou antes com o receio do
que com a esperança, não tanto porque acredite na explosão referida, como porque desejo vender a minha droga.
Pode ser que haja nesta confissão uma ou duas gramas de cinismo; mas o cinismo, que é a sinceridade dos
patifes, pode contaminar uma consciência reta, pura e elevada, do mesmo modo que o bicho pode roer os mais
sublimes livros do mundo.
Vamos, porém, à droga, e comecemos por dizer que estou em desacordo com todos os meus contemporâneos,
relativamente ao motivo que leva o capoeira a plantar facadas nas nossas barrigas. Diz-se que é o gosto de fazer
mal, de mostrar agilidade e valor, opinião unânime e respeitada como um dogma. Ninguém vê que é simplesmente
absurda.
Com efeito, não duvido que um ou outro, excepcionalmente, nutra essa perversão de entranhas; mas a natureza
humana não comporta a extensão de tais sentimentos. Não é crível que tamanho número de pessoas se divirtam
em rasgar o ventre alheio, só para fazer alguma coisa. Não se trata de vivissecção, em que um certo abuso, por
maior que seja, é sempre científico, e com o qual só padece cachorro, que não é gente, como se sabe. Mas como
admitir tal coisa com homem e fora do gabinete?
Bastou-me fazer esta reflexão, para descobrir a causa das facadas anônimas e adventícias, e logo o medicamento
apropriado. Veja o leitor se não concorda comigo?
Capoeira é homem. Um dos característicos do homem é viver com o seu tempo. Ora, o nosso tempo (nosso e do
capoeira) padece de uma coisa que poderemos chamar – erotismo de publicidade. Uns poderão crer que é
achaque, outros que é uma recrudescência de energia, porque o sentimento é natural. Seja o que for, o fato
existe, e basta andar na aldeia sem ver as casas, para reconhecer que nunca esta espécie de afecção chegou ao
grau em que a vemos.
Sou justo. Há casos em que acho a coisa natural. Na verdade, se eu, completando hoje cinquenta anos, janto com
a família e dois ou três amigos, por que não farei participante do meu contentamento este respeitável público?
Embarco, desembarco, dou ou recebo um mimo, nasce-me um porco com duas cabeças, qualquer caso desses
pode muito bem figurar em letra redonda, que dá vida a coisas muito menos interessantes. E, depois, o nome da
gente, em letra redonda, tem outra graça, que não em letra manuscrita; sai mais bonito, mais nítido, mete-se pelos
olhos dentro, sem contar que pessoas que hão de ler, comprar as folhas, e a gente fica notória sem despender
nada. Não nos envergonhemos de viver na rua; é muito mais fresco.
Aqui tocamos o ponto essencial. O capoeira está nesta matéria como Crébilon em matéria de teatro. Perguntou-se
a este, por que compunha peças de fazer arrepiar os cabelos; ele respondeu que, tendo Racine tomado o céu
para si e Corneille a terra, não lhe restava mais que o inferno em que se meteu. O mesmo acontece ao capoeira.
Não pode distribuir mimos espirituais, ou drogas infalíveis, todos os porcos nascem-lhe com uma cabeça, nenhum
meio de ocupar os outros com a sua preciosa pessoa. Recorre à navalha, espalha facadas, certo de que os jornais
darão notícias das suas façanhas e divulgarão os nomes de alguns.
Já o leitor adivinhou o meu medicamento. Não se pode falar com gente esperta; mal se acaba de dizer uma coisa,
conclui logo a coisa restante. Sim, senhor, adivinhou, é isso mesmo: não publicar mais nada, trancar a imprensa
às valentias da capoeiragem. Uma vez que se não dê mais notícia, eles recolhem-se às tendas, aborrecidos de
ver que a crítica não anima os operosos.
Logo depois a autoridade, tendo à mão algumas associações, becos e suspensórios ainda sem título, entra pelas
tendas e oferece aos nossos Aquiles uma compensação de publicidade. Vitória completa: eles aceitam o
derivativo, que os traz ao céu de Racine e à terra de Corneille, enquanto as navalhas, restituídas aos barbeiros,
passarão a escanhoar os queixos da gente pacífica. Ex fumo dare lucem.
Qual o tema central do texto?