O que existe ou não existe numa língua?
(Marcos Bagno)
Quando se trata de falar sobre a língua, o verbo existir pode
ter dois sentidos muito diferentes. A pessoa que se guia pelo
purismo linguístico (uma espécie de racismo gramatical,
nada menos), quando topa, por exemplo, com uma
construção do tipo “pra mim fazer”, exclama
categoricamente: “‘Pra mim fazer’ não existe em português!”.
Não importa que a imensa maioria da população brasileira
use essa construção: o fato de não estar prevista na
(limitadíssima e paupérrima) norma-padrão convencional é
suficiente para decretar sua inexistência. Me divirto muito
com isso. Se a coisa “não existe”, para que então afirmar
essa não-existência? Tá lá no Freud, e se chama denegação.
Se o Antigo Testamento precisou condenar a
homossexualidade é porque ela existia, sim, alegre e
saltitante, na sociedade hebraica daquela época. Afinal,
ninguém precisa dizer que não existem elefantes na
Amazônia: se fôssemos listar todas as espécies animais que
não existem lá, estaríamos fazendo um trabalho inútil e,
convenhamos, ridículo.
Por outro lado, quando uma linguista diz que determinada
categoria gramatical (ou qualquer outro elemento) não existe
numa língua, ela está enunciando aquilo que a pesquisa
acumulada a respeito do fenômeno permite concluir. Não se
trata de listar todas as categorias gramaticais que não
existem numa língua, mas de procurar entender, num quadro
mais amplo de comparação, sobretudo entre línguas
aparentadas, porque aquela categoria específica, se algum
dia existiu, desapareceu devido aos processos de mudança
linguística. Além disso, quando a linguista diz que X não
existe, ela está se referindo à língua falada espontânea, ao
discurso menos monitorado possível, porque é nessa
modalidade de uso que se pode realmente detectar com
certeza a gramática internalizada das pessoas que falam,
bem como os processos de mudança em andamento. E é
precisamente disso que quero tratar aqui hoje: da
inexistência, no PB (português brasileiro), de pronomes
oblíquos de 3ª pessoa. Já se assustou? Não precisa.
As formas oblíquas de 3ª p. — o, a, os, as — não pertencem à
gramática do PB (gramática entendida aqui como o
conhecimento intuitivo que cada uma de nós tem da língua
que fala). Essas formas só podem ser adquiridas por meio
do acesso à cultura letrada, da instrução formal, do ensino
consciente da língua. A esse ensino consciente podemos
contrapor a aquisição inconsciente da língua, que é o
misterioso processo pelo qual aprendemos a falar nossa
língua materna (ou línguas no plural, no caso das pessoas
sortudas que nascem e crescem em ambientes
multilíngues).
Quem nos revela melhor do que ninguém a (in)existência de
categorias gramaticais numa língua são as crianças,
especialmente as que ainda não tiveram acesso à educação
formal. Uma menina de mais ou menos 7 anos já é dotada
de um conhecimento fabuloso de sua língua. Se formos
coletar a fala espontânea de crianças brasileiras dessa
idade, seja de que classe social for, não vamos encontrar
absolutamente nenhuma ocorrência de o/a/os/as como
pronomes oblíquos. Se, por outro lado, formos coletar a fala
de crianças dessa idade que tenham como língua materna
português europeu, galego, espanhol, catalão, provençal,
francês e italiano (para ficar só nessas línguas do grupo
românico), vamos encontrar uma farta ocorrência dos
pronomes oblíquos de 3ª p. dessas línguas. A réplica
daquela velha parlenda brasileira “— Cadê o docinho que tava
aqui? — O gato comeu” seria traduzida em todas essas
línguas pelo equivalente a “o gato o comeu”. Se as crianças
brasileiras não produzem o/a/os/as é porque não adquiriram
esses pronomes no ambiente familiar, e se não adquiriram é
porque seus pais, tios, avós etc. não usam esses pronomes.
Simples assim.
(Disponível em: https://bit.ly/372nb5v. Acesso em nov. 2020)
Leia o texto 'O que existe ou não existe numa
língua?' e, em seguida, analise as afirmativas abaixo:
I. Uma forma de oferecer maior objetividade ao texto,
modificando as formas verbais, sem alterar a função
discursiva do trecho “Não importa que a imensa maioria da
população brasileira use essa construção...”, seria reescrevêlo da seguinte maneira: “Não importa a imensa população
brasileira usar essa construção...”. O mesmo fenômeno pode
ocorrer em enunciados como I. Joana quer que você faça
aquela deliciosa torta; II. Joana quer fazer aquela deliciosa
torta.
II. No trecho “Se a coisa ‘não existe’, para que então afirmar
essa não-existência?”, o uso de pronome apassivador confere
objetividade ao texto, pois evita-se a voz passiva analítica da
forma verbal. Já o pronome demostrativo exerce papel
importante na retomada das ideias, corroborando com a
progressão sequencial.
III. No fragmento “se fôssemos listar todas as espécies
animais que não existem lá, estaríamos fazendo um trabalho
inútil e, convenhamos, ridículo”, o uso da primeira pessoa do
plural, com destaque para o isolamento da forma verbal
“convenhamos”, por vírgulas, convida o leitor a compartilhar
do mesmo ponto de vista do autor. Fenômeno idêntico se dá
com algumas expressões, gramaticalmente bem localizadas,
como a do enunciado a seguir: “O aumento acentuado da
pobreza pode levar o Brasil novamente para o Mapa da Fome.
Isso é a meu ver, um grave retrocesso”.
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