O Brasil é minha morada
1 Permita-me que lhes confesse que o Brasil é
a minha morada. O meu teto quente, a minha sopa
fumegante. É casa da minha carne e do meu
espírito. O alojamento provisório dos meus mortos.
A caixa mágica e inexplicável onde se abrigam e se
consomem os dias essenciais da minha vida.
2 É a terra onde nascem as bananas da minha
infância e as palavras do meu sempre precário
vocabulário. Neste país conheci emoções
revestidas de opulenta carnalidade que nem
sempre transportavam no pescoço o sinete da
advertência, justificativa lógica para sua existência.
3 S e m dúvida, o Brasil é o paraíso essencial
da minha memória. O que a vida ali fez brotar
com abundância, excedeu ao que eu sabia. Pois
cada lembrança brasileira corresponde à memória
do mundo, onde esteja o universo resguardado.
Portanto, ao apresentar-me aqui como brasileira,
automaticamente sou romana, sou egípcia, sou
hebraica. Sou todas as civilizações que aportaram
neste acampamento brasileiro.
4 Nesta terra, onde plantando-se nascem a
traição, a sordidez, a banalidade, também afloram a
alegria, a ingenuidade, a esperança, a
generosidade, atributos alimentados pelo feijão bem
temperado, o arroz soltinho, o bolo de milho, o bife
acebolado, e tantos outros anjos feitos com gema
de ovo, que deita raízes no mundo árabe, no mundo
luso.
5 Deste país surgiram inesgotáveis sagas,
narradores astutos, alegres mentirosos. Seres
anônimos, heróis de si mesmos, poetas dos sonhos
e do sarcasmo, senhores de máscaras venezianas,
africanas, ora carnavalescas, ora mortuárias.
Criaturas que, afinadas com a torpeza e as
inquietudes do seu tempo, acomodam-se
esplêndidas à sombra da mangueira só pelo prazer
de dedilhar as cordas da guitarra e do coração.
6 Neste litoral, que foi berço de heróis, de
marinheiros, onde os saveiros da imaginação
cruzavam as águas dos mares bravios em busca de
peixes, de sereias e da proteção de Iemanjá, ali se
instalaram civilizações feitas das sobras de outras
tantas culturas. Cada qual fincando hábitos,
expressões, loucas demências nos nossos peitos.
7 Este Brasil que critico, examino, amo, do qual
nasceu Machado de Assis, cujo determinismo
falhou ao não prever a própria grandeza. Mas como
poderia este mulato, este negro, este branco, esta
alma miscigenada, sempre pessimista e feroz,
acatar uma existência que contrariava regras,
previsões, fatalidades? Como pôde ele, gênio das
Américas, abraçar o Brasil, ser sua face, soçobrar
com ele e revivê-lo ao mesmo tempo?
8 Fomos portugueses, espanhóis e
holandeses, até sermos brasileiros. Uma grei de
etnias ávidas e belas, atraída pelas aventuras
terrestres e marítimas. Inventora, cada qual, de uma
nação foragida da realidade mesquinha, uma
espécie de ficção compatível com uma fábula que
nos habilite a frequentar com desenvoltura o teatro
da história.
(PIÑON, Nélida. Aprendiz de Homero. Rio de Janeiro: Editora
Record, 2008, p. 241-243, fragmento.)
“Deste país surgiram inesgotáveis sagas,
narradores astutos, alegres mentirosos. Seres
anônimos, heróis de si mesmos, poetas dos sonhos
e do sarcasmo, senhores de máscaras venezianas,
africanas, ora carnavalescas, ora mortuárias.” (5º §)
Entre os dois períodos do fragmento transcrito
acima, a coesão textual se estabelece pelo fato de
o 2º período estar para o 1º na função de: