TEXTO IV
Aí pelas três da tarde
Nesta sala atulhada de mesas,
máquinas e papéis, onde invejáveis escreventes dividiram entre si o bom senso
do mundo, aplicando-se em ideias claras apesar do ruído e do mormaço, seguros
ao se pronunciarem sobre problemas que afligem o homem moderno (espécie da qual
você, milenarmente cansado, talvez se sinta um tanto excluído), largue tudo de
repente sob os olhares a sua volta, componha uma cara de louco quieto e perigoso,
faça os gestos mais calmos quanto os tais escribas mais severos, dê um largo
“ciao” ao trabalho do dia, assim como quem se despede da vida, e surpreenda pouco
mais tarde, com sua presença em hora tão insólita, os que estiverem em casa
ocupados na limpeza dos armários, que você não sabia antes como era conduzida.
Convém não responder aos olhares interrogativos, deixando crescer, por instantes,
a intensa expectativa que se instala. Mas não exagere na medida e suba sem demora
ao quarto, libertando aí os pés das meias e dos sapatos, tirando a roupa do
corpo como se retirasse a importância das coisas, pondo-se enfim em vestes
mínimas, quem sabe até em pelo, mas sem ferir o decoro (o seu decoro, está
claro), e aceitando ao mesmo tempo, como boa verdade provisória, toda mudança
de comportamento. Feito um banhista incerto, assome em seguida no trampolim do
patamar e avance dois passos como se fosse beirar um salto, silenciando de vez,
embaixo, o surto abafado dos comentários. Nada de grandes lances. Desça, sem
pressa, degrau por degrau, sendo tolerante com o espanto (coitados!) dos pobres
familiares, que cobrem a boca com a mão enquanto se comprimem ao pé da escada.
Passe por eles calado, circule pela casa toda como se andasse numa praia
deserta (mas sempre com a mesma cara de
louco ainda não precipitado) e se achegue depois, com cuidado e ternura, junto
à rede languidamente envergada entre plantas lá no terraço. Largue-se nela como quem se larga na vida, e vá ao
fundo nesse mergulho: cerre as abas da rede sobre os olhos e, com um impulso do
pé (já não importa em que apoio), goze a fantasia de se sentir embalado pelo
mundo.
Raduan Nassar
Texto extraído do livro “ Menina
a caminho”, Companhia das Letras - São Paulo, 1997, pág. 71.
Baseando-se na leitura do texto de Raduan Nassar, assinale a alternativa que contém assertivas verdadeiras.
I - Neste texto, o autor utiliza os parênteses para explicar uma palavra desconhecida.
II- O texto apresenta uma linguagem irônica, pois dá ao leitor uma instrução incomum, mas que pode ser levada a sério.
III- A expressão “sem ferir o decoro” significa “sem abalar as regras morais”.