Texto 1
Escravidão
José Roberto Pinto de Góes
Uma fonte histórica importante no estudo da escravidão no Brasil são os “relatos de viajantes”,
geralmente de europeus que permaneciam algum tempo no Brasil e, depois, escreviam sobre o que
haviam visto (ou entendido) nesses trópicos. Existem em maior número para o século XIX. Todos se
espantaram com a onipresença da escravidão, dos escravos e de uma população livre, mulata e de cor
preta. O reverendo Roberto Walsh, por exemplo, que desembarcou no Rio de Janeiro em finais da década
de 1820, deixou o seguinte testemunho: "Estive apenas algumas horas em terra e pela primeira vez pude
observar um negro africano sob os quatro aspectos da sociedade. Pareceu-me que em cada um deles seu
caráter dependia da situação em que se encontrava e da consideração que tinham com ele. Como um
escravo desprezado era muito inferior aos animais de carga... soldado, o negro era cuidadoso com a sua
higiene pessoal, acessível à disciplina, hábil em seus treinamentos, com o porte e a constituição de um
homem branco na mesma situação. Como cidadão, chamava a atenção pela aparência respeitável... E
como padre... parecia até mais sincero em suas ideias, e mais correto em suas maneiras, do que seus
companheiros brancos”.
Em apenas algumas horas caminhando pelo Rio de Janeiro, Walsh pôde ver, pela primeira vez
(quantos lugares o reverendo terá visitado?), indivíduos de cor preta desempenhando diversos papéis:
escravo, soldado, cidadão e padre. Isso acontecia porque a alforria era muito mais recorrente aqui do que
em outras áreas escravistas da América, coisa que singularizou em muito a nossa história.
Robert Walsh escreveu que os escravos eram inferiores aos animais de carga. Se quis dizer com
isso que eram tratados e tidos como tal, acertou apenas pela metade. Tratados como animais de carga
eram mesmo, aos olhos do reverendo e aos nossos, de hoje em dia. Mas é muito improvável que tenha
sido esta a percepção dos proprietários de escravos. Não era. Eles sabiam que lidavam com seres
humanos e não com animais. Com animais tudo é fácil. A um cavalo, se o adestra. A outro homem, faz-se
necessário convencê-lo, todo santo dia, a se comportar como escravo. O chicote, o tronco, os ferros, o
pelourinho, a concessão de pequenos privilégios e a esperança de um dia obter uma carta de alforria
ajudaram o domínio senhorial no Brasil. Mas, me valendo mais uma vez de Joaquim Nabuco, o que
contava mesmo, como ele disse, era a habilidade do senhor em infundir o medo, o terror, no espírito do
escravo.
O medo também era um sentimento experimentado pelos senhores, pois a qualquer hora tudo
poderia ir pelos ares, seja pela sabotagem no trabalho (imagine um canavial pegando fogo ou a
maquinaria do engenho quebrada), seja pelo puro e simples assassinato do algoz. Assim, uma espécie de
acordo foi o que ordenou as relações entre senhores e escravos. Desse modo, os escravos puderam
estabelecer limites relativos à proteção de suas famílias, de suas roças e de suas tradições culturais.
Quando essas coisas eram ignoradas pelo proprietário, era problema na certa, que resultava quase
sempre na fuga dos cativos. A contar contra a sorte dos escravos, porém, estava o tráfico transatlântico
intermitente, jogando mais e mais estrangeiros, novatos, na população escrava. O tráfico tornava muito
difícil que os limites estabelecidos pelos escravos à volúpia senhorial criassem raízes e virasse um
costume incontestável.
Fonte: GÓES, José Roberto Pinto de. Escravidão. [fragmento]. Biblioteca Nacional, Rede da Memória Virtual Brasileira. Disponível em
http://bndigital.bn.br/redememoria/escravidao.html. Acesso em ago. 2012.
Texto 3
Cotas: continuidade da Abolição
Eloi Ferreira de Araújo
Sancionada em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea foi responsável pela libertação de cerca de um
milhão de escravos ainda existentes no País. Representou a longa campanha abolicionista de mais de 380
anos de lutas. No entanto, aos ex-cativos não foram assegurados os benefícios dados aos imigrantes, que
tiveram a proteção especial do Estado Imperial e mais tarde da República. Foram mais de 122 anos desde
a abolição, sem que nenhuma política pública propiciasse a inclusão dos negros na sociedade, os quais
são cerca de 52% da população brasileira.
A primeira lei que busca fazer com que o Estado brasileiro inicie a longa caminhada para a
construção da igualdade de oportunidades entre negros e não negros só veio a ser sancionada, em 2010,
depois de dez anos de tramitação. Trata-se do Estatuto da Igualdade Racial, que oferece as
possibilidades, através da incorporação das ações afirmativas ao quadro jurídico nacional, de reparar as
desigualdades que experimentam os pretos e pardos. Este segmento que compõe a nação tem em sua
ascendência aqueles que, com o trabalho escravo, foram responsáveis pela pujança do capitalismo
brasileiro, bem como são contribuintes marcantes da identidade nacional. Ressalte-se que não há
correspondência na apropriação dos bens econômicos e culturais por parte dos descendentes de
africanos na proporção de sua contribuição para o País.
O Supremo Tribunal Federal foi instado a decidir sobre a adoção de cotas para pretos e pardos no
ensino superior público, e também no privado, na medida em que o ProUni foi também levado a
julgamento. A mais alta Corte do país decidiu que estas ações afirmativas são constitucionais.
Estabeleceu assim, uma espécie de artigo 2º na Lei Áurea, para assegurar o ingresso de pretos e pardos
nas universidades públicas brasileiras, e reconheceu a constitucionalidade também do ProUni.(...)
O Brasil tem coragem de olhar para o passado e lançar sem medo as sementes de construção de
um novo futuro. Desta forma, podemos interpretar que tivemos o fim da escravidão como o artigo primeiro
do marco legal. A educação com aprovação das cotas para ingresso no ensino superior como o artigo
segundo. Ainda faltam mais dispositivos que assegurem a terra e o trabalho com funções qualificadas. Daí
então, em poucas décadas, e com a implementação das ações afirmativas, teremos de fato um Estado
verdadeiramente democrático, em que todos, independentemente da cor da sua pele ou da sua etnia,
poderão fruir de bens econômicos e culturais em igualdade de oportunidades.
Fonte: Governo Federal. Fundação Cultural Palmares.
Disponível em http://www.palmares.gov.br/cotas-continuidade-da-abolicao/.
Acesso em ago. 2012
Tratados como animais de carga eram mesmo, aos olhos do reverendo e aos nossos, de
hoje em dia. [Texto 1]
Neste fragmento do Texto 1, o autor estabelece um vínculo entre o ponto de vista do viajante do século XIX
e o nosso ponto de vista, hoje.
O fragmento do Texto 3 que corrobora a veracidade desse ponto de vista é: