TEXTO II
O menino está fora da paisagem
Arnaldo Jabor
O menino parado no sinal de trânsito vem
em minha direção e pede esmola. Eu preferia que
ele não viesse. A miséria nos lembra que a desgraça
existe e a morte também. Como quero esquecer a
morte, prefiro não olhar o menino. Mas não me
contenho e fico observando os movimentos do
menino na rua. Sua paisagem é a mesma que a
nossa: a esquina, os meios-fios, os postes. Mas ele
se move em outro mapa, outro diagrama. Seus
pontos de referência são outros.
Como não tem nada, pode ver tudo. Vive
num grande playground, onde pode brincar com
tudo, desde que “de fora”. O menino de rua só pode
brincar no espaço “entre” as coisas. Ele está fora do
carro, fora da loja, fora do restaurante. A cidade é
uma grande vitrine de impossibilidades. O menino
mendigo vê tudo de baixo. Está na altura dos
cachorros, dos sapatos, das pernas expostas dos
aleijados. O ponto de vista do menino de rua é muito
aguçado, pois ele percebe tudo que lhe possa ser útil
ou perigoso. Ele não gosta de ideias abstratas. Seu
ponto de vista é o contrário do intelectual: ele não vê
o conjunto nem tira conclusões históricas – só
detalhes interessam. O conceito de tempo para ele é
diferente do nosso. Não há segunda-feira, colégio,
happy hour. Os momentos não se somam, não
armazenam memórias. Só coisas “importantes”:
“Está na hora do português da lanchonete despejar o
lixo...” ou “estão dormindo no meu caixote...”
Se pudéssemos traçar uma linha reta de
cada olhar do menino mendigo, teríamos bilhões de
linhas para o lado, para baixo, para cima, para
dentro, para fora, teríamos um grande painel de
imagens. E todas ao rés-do-chão: uma latinha, um
riozinho na sarjeta, um palitinho de sorvete, um
passarinho na árvore, uma pipa, um urubu circulando
no céu. Ele é um espectador em 360 graus. O
menino de rua é em cinemascope. O mundo é todo
seu, o filme é todo seu, só que não dá para entrar na
tela. Ou seja, ele assiste a um filme “dentro” da ação.
Só que não consta do elenco. Ele é um penetra; é
uma espécie de turista marginal. Visto de fora, seria
melhor apagá-lo. Às vezes, apagam.
Se não sentir fome ou dor, ele curte. Acha
natural sair do útero da mãe e logo estar junto aos
canos de descarga pedindo dinheiro. Ele se acha
normal; nós é que ficamos anormais com a sua
presença.
Antigamente não o víamos, mas ele sempre
nos viu. Depois que começou o medo da violência,
ele ficou mais visível. Ninguém fica insensível a ele.
Mesmo em quem não o olha, ele nota um fremir
quase imperceptível à sua presença. Ele percebe
que provoca inquietação (medo, culpa, desgosto,
ódio). Todos preferiam que ele não estivesse ali. Por
quê? Ele não sabe.
Evitamos olhá-lo; mas ele tenta atrair nossa
atenção, pois também quer ser desejado. Mas os
olhares que recebe são fugidios, nervosos, de
esguelha.
Vejo que o menino se aproxima de um grupo
de mulheres com sacolas de lojas. Ele avança
lentamente dando passos largos e batendo com uma
varinha no chão. Abre-se um vazio de luz por onde
ele passa, entre as mulheres – mães e filhas. É uma
maneira de pertencer, de existir naquela família ali,
mesmo que “de fora”, como uma curiosidade. Assim,
ele entra na família, um anti-irmãozinho que chega.
As mães não têm como explicar aos filhos quem ele
é, “por que” eles não são como “ele” (análise social)
ou por que “ele” não é como nós (analise política).
Porém, normalmente, mães e pais evitam
explicações, para não despertar uma curiosidade
infantil que poderia descer até as bases da
sociedade – que os pais não conhecem, mas que se
lhes afigura como algo sagrado, em que não se deve
mexer.
O menino de rua nos ameaça justamente
pela fragilidade. Isso enlouquece as pessoas: têm
medo do que atrai. Mais tarde, ele vai crescer... e aí?
O menino de rua tem mais coragem que
seus lamentadores; ele não se acha símbolo de
nada, nem prenúncio, nem ameaça. Está em casa,
ali, na rua. Olhamos o pobrezinho parado no sinal
fazendo um tristíssimo malabarismo com três
bolinhas e sentimos culpa, pena, indignação.
Então, ou damos uma esmola que nos
absolva ou pensamos que um dia poderá nos
assaltar. Ele nos obriga ao raríssimo sentimento da
solidariedade, que vai contra todos os hábitos de nossa vida egoísta de hoje. E não podemos reclamar
dele. É tão pequeno... O mendigo velho, tudo bem:
“Bebeu, vai ver a culpa é dele, não soube se
organizar, é vagabundo”. Tudo bem. Mas o mendigo
menino não nos desculpa porque ele não tem
piedade de si mesmo.
Todas nossas melhores recordações
costumam ser da infância. Saudades da aurora da
vida. O menino de rua estraga nossas memórias. Ele
estraga a aurora de nossas vidas. Por isso, tentamos
ignorá-lo ou o exterminamos. Antes, todos fingiam
que ele não existia. Depois das campanhas da fome,
surgiram olhares novos. Já sabemos que ele é um
absurdo dentro da sociedade e que de alguma forma
a culpa é nossa.
Ele tem ao menos uma utilidade: estragando
nossa paisagem presente, pode melhorar nosso
futuro. O menino de rua denuncia o ridículo do
pensamento – genérico-crítico –, mostra-nos que
uma crítica à injustiça tem de apontar soluções
positivas. Ele nos ensina que a crítica e o lamento
pelas contradições (como estou fazendo agora) só
servem para nos “enobrecer” e “absolver”. Para ele,
nossos sentimentos não valem nada. E não valem
mesmo. Mesmo não sabendo nada, ele sabe das
coisas.
Disponível em:
https://www.otempo.com.br/opiniao/arnaldo-jabor/omenino-esta-fora-da-paisagem-1.887105
Mesmo não marcadas linguisticamente por
conectivos lógicos, há relações semânticas claras
entre as partes do texto; assim, nas seguintes
passagens retiradas do 2º período “O conceito de
tempo para ele é diferente do nosso. Não há segunda-feira, colégio, happy hour. Os momentos
não se somam, não armazenam memórias.”, os dois
últimos períodos estabelecem com o primeiro uma
relação semântica de: