Fazer 80
E assim, aconteceu que esta semana eu fizesse
80 anos!
Nunca imaginei chegar tão longe. Filha de uma
mãe que morreu aos 40, considerava-me destinada
a curto percurso. E a vida não parecia ter por mim
grande apreço; tentou me matar de pneumonia aos
seis anos, dardejou-me uma meningite aos oito, castigou-me com inúmeras pneumonias ao longo de todo
o percurso e, já no terceiro ato, coroou o conjunto
com uma tuberculose. Mas, como se disputasse uma
maratona, cheguei aos 80 esbaforida somente pelo
trabalho.
80 anos são uma tremenda esquina da vida.
Com certeza chegamos a ela mais frágeis, porque
a possibilidade de morte, que sempre foi a mesma,
mas que antes parecia eventual, ganha uma certa
concretude.
E, ao mesmo tempo, chegamos mais fortes porque a maior parte do caminho foi percorrida, as inseguranças da juventude ficaram para trás, alguma
tantas perguntas já foram respondidas, e o que havia
a fazer já foi feito.
Certas coisas mudam, porém, aos 80.
Não terei mais cão, porque um cão correria o risco de viver mais do que eu, e não quero prometer
proteção e amor a alguém para de repente descumprir a promessa. Não faço mais projetos a longo prazo; vou até alguns meses à frente, aos compromissos
já marcados, embora sabendo que para o ano que
vem marcarei outros. Não vou mais imaginar-me
mergulhada em estudos de alemão, como sempre
fiz, e muito menos de mandarim, como minha curiosidade me ordenaria. No capítulo viagens, dou uma
fechadinha no leque; não conhecerei o Himalaia, não
enfrentarei falta de hotel ou de banheiro, não caminharei tardes inteiras atendendo minha ânsia turística. E até nos museus, minha sempre paixão, terei que
ser menos gulosa.
Fecho o leque da realidade, mas tenho outro para
abrir. As minhas viagens, tantas, estão anotadas em
cadernos e cadernetas. Ali estão datas, descrições e
até desenhos ou rabiscos retendo aquilo que ameaçava diluir. Agora, me basta abrir qualquer um deles
para retomar a estrada.
Isso, quanto às viagens facultativas e aventurosas. As outras, de trabalho, continuam na ordem do
dia, levando-me a arrastar minha malinha de rodas
pelos aeroportos da vida.
Aos 80, considero todo dia como um presente dos deuses, embora até hoje não saiba quem são eles. E
toda noite agradeço com gratidão, mesmo com a indecisão do endereço.
Até essa esquina olha-se para a frente. Chegando
a ela, o retrovisor se impõe.
Olho para trás e o que vejo me agrada. Vivi com
abundância, a palavra melhor é essa. Abundância biográfica de países, de línguas e culturas. Abundância
de situações, as favoráveis e as adversas. Abundância
de encontros com pessoas preciosas, com criaturas
admiráveis, e alguns poucos canalhas, úteis como referência. Trabalhei em muitas coisas diferentes e de
todas gostei, porque de cada uma fiz um degrau de
aprendizado que me permitiu desempenhar a próxima. Li quase todos os dias da minha vida, fosse pouco
ou muito, enchendo a mochila de dados que eu embaralharia, de nomes que se iriam no vento, mas conservando as emoções que os livros me davam. Não
escrevi tanto quanto li, nem teria sido possível. Mas
o que escrevi está de acordo comigo e me representa
mais generosamente que uma selfie.
Considero estar pronta para o embarque. Mas
enquanto meu voo não é anunciado, vou estruturando — como faço com frequência em aeroportos —
ideias e frases de um próximo livro.
COLASANTI, Marina. Disponível em: <https://www.marinacolasanti.com/2017/09/cronica-de-quinta-fazer-80.html?fb_action_ids=1437566189697967&fb_action_types=og.comments>. Acesso em: 25
fev. 2018.
Relacione as palavras em destaque à sua classe gramatical.
1. “[...]considerava-me
destinada a curto percurso.”
2. “[...] cheguei aos 80 esbaforida somente pelo
trabalho.”
3. “[...] alguma tantas
perguntas já foram respondidas [...]”
4. “[...] não caminharei
tardes inteiras atendendo minha ânsia turística.”
5. “Ali estão datas, descrições e até desenhos
ou rabiscos retendo
aquilo que ameaçava
diluir.”
6. “As outras, de trabalho, continuam na ordem do dia [...]”
( ) Adjetivo
( ) Advérbio de lugar
( ) Pronome indefinido
( ) Pronome pessoal
( ) Pronome possessivo
( ) Substantivo
A sequência correta dessa associação é: