Texto I
Do moderno ao pós-moderno
Frei Betto / 14/05/2017 - 06h00
A morte da modernidade merece missa de sétimo dia? Os pais da modernidade nos deixaram de herança a confiança nas possibilidades da razão. E nos ensinaram a situar o homem no centro do pensamento e a acreditar que a razão, sem dogmas e donos, construiria uma sociedade livre e justa.
Pouco afeitos ao delírio e à poesia, não prestamos atenção à crítica romântica da modernidade – Byron, Rimbaud, Burckhardt, Nietzsche e Jarry. Agora, olhamos em volta e o que vemos? As ruínas do Muro de Berlim, a Estátua da Liberdade tendo o mesmo efeito no planeta que o Cristo do Corcovado na vida cristã dos cariocas, o desencanto com a política, o ceticismo frente aos valores.
Somos invadidos pela incerteza, a consciência fragmentária, o sincretismo do olhar, a disseminação, a ruptura e a dispersão. O evento soa mais importante que a história e o detalhe sobrepuja a fundamentação.
O pós-moderno aparece na moda, na estética, no estilo de vida. É a cultura de evasão da realidade. De fato, não estamos satisfeitos com a inflação, com a nossa filha gastando mais em pílulas de emagrecimento que em livros, e causanos profunda decepção saber que, neste país, a impunidade é mais forte que a lei. Ainda assim, temos esperança de mudá-lo. Recuamos do social ao privado e, rasgadas as antigas bandeiras, nossos ideais transformam-se em gravatas estampadas. Já não há utopias de um futuro diferente. Hoje, é considerado politicamente incorreto propagar a tese de conquista de uma sociedade onde todos tenham iguais direitos e oportunidades.
Agora predominam o efêmero, o individual, o subjetivo e o estético. Que análise de realidade previu a volta da Rússia à sociedade de classes? Resta-nos captar fragmentos do real (e aceitar que o saber é uma construção coletiva). Nosso processo de conhecimento se caracteriza pela indeterminação, descontinuidade e pluralismo.
A desconfiança da razão nos impele ao esotérico, ao espiritualismo de consumo imediato, ao hedonismo consumista, em progressiva mimetização generalizada de hábitos e costumes. Estamos em pleno naufrágio ou, como predisse Heidegger, caminhando por veredas perdidas.
Sem o resgate da ética, da cidadania e das esperanças libertárias, e do Estado-síndico dos interesses da maioria, não haverá justiça, exceto aquela que o mais forte faz com as próprias mãos.
Ingressamos na era da globalização. Graças às redes de computadores, um rapaz de São Paulo pode namorar uma chinesa de Beijing sem que nenhum dos dois saia de casa. Bilhões de dólares são eletronicamente transferidos de um país a outro no jogo da especulação, derivativo de ricos. Caem as fronteiras culturais e econômicas, afrouxam-se as políticas e morais. Prevalece o padrão do mais forte.
A globalização tem sombras e luzes. Se de um lado aproxima povos e quebra barreiras de comunicação, de outro ela assume, nas esferas econômica e cultural, o caráter de globocolonização.
(Disponível em: http://hojeemdia.com.br/opini%C3%A3o/colunas/frei-betto-1.334186/domoderno-ao-p%C3%B3s-moderno-1.464377. Acesso 05 jan. 2018)
Texto II
Razões da pós-modernidade
Carlos Alberto Sanches, professor, perito e consultor em Redação – [31/03/2014
- 21h06]
Foi nos anos 60 que surgiu o que se chama de “pós-modernidade”, na
abalizada opinião de Frederic Jameson, como “uma lógica cultural” do capitalismo
tardio, filho bastardo do liberalismo dos séculos 18 e 19. O tema é controverso, pois está associado a uma discussão sobre sua emergência funesta no pósguerra.
É que ocorre nesse período um profundo desencanto no homem contemporâneo,
especialmente no que toca à diluição e abalo de seus valores axiológicos,
como verdade, razão, legitimidade, universalidade, sujeito e progresso etc. Os sonhos
se esvaneceram, juntamente com os valores e alicerces da vida: a “estética”,
a “ética” e a “ciência”, e as repercussões que isso provocou na produção cultural:
literatura, arte, filosofia, arquitetura, economia, moral etc.
Há, sem dúvida, uma crise cultural que desemboca, talvez, em uma crise
de modernidade. Ou a constatação de que, rompida a modernidade, destroçada
por guerras devastadoras, produto da “gaia ciência” libertadora, leva a outra ruptura:
morreu a pós-modernidade e deixou órfã a cultura contemporânea?
Seria o caso de se falar em posteridade na pós-modernidade? Max Weber,
já no início do século 19, menciona a chegada da modernidade trocada pela “racionalização
intelectualista”, que produz o “desencanto do mundo”. Habermas o reinterpreta,
dizendo que a civilização se desagrega, especialmente no que toca aos
conceitos da verdade, da coerência das leis, da autenticidade do belo, ou seja,
como questões de conhecimento...
Jean Francois Lyotard, em seu livro A condição pós-moderna, de 1979,
enfoca a legitimação do conhecimento na cultura contemporânea. Para ele, “o pósmoderno
enquanto condição de cultura, nesta era pós-industrial, é marcado pela
incredulidade face ao metadiscurso filosófico – metafísico, com suas pretensões
atemporais e universalizantes”. É como se disséssemos, fazendo coro, mais tarde,
com John Lennon, que “o sonho acabou” (ego trip). A razão, como ponto nevrálgico
da cultura moderna, não leva a nada, a não ser à certeza de que o racionalismo
iluminista, que vai entronizar a ciência como uma mola propulsora para a criação
de uma sociedade justa, valorizadora do indivíduo, vai apenas produzir o desencanto,
via progresso e com as suas descobertas, cantadas em prosa e verso, que
nos deixaram um legado brutal: as grandes tragédias do século 20: guerras atrozes,
a bomba atômica, crise ecológica, a corrida armamentista...
A frustração é enorme, porque o iluminismo afirmara que somente as luzes
da razão poderiam colocar o homem como gerador de sua história. Mas tudo não
passou de um sonho, um sonho de verão (parodiando Shakespeare). Habermas
coloca nessa época, o século 18, o gatilho que vai acionar essa desilusão da pós-modernidade.
A ciência prometia dar segurança ao homem e lhe deu mais desgraças. Entendamos aqui também a racionalidade (o primado da razão cartesiana) como cúmplice dessa falcatrua da modernidade e, portanto, da atual pós-modernidade.
O mesmo filósofo fala em “desastre da modernidade”, um tipo de doença
que produziu uma patologia social chamada de “império da ciência”, despótico e
tirânico, que “digere” as esferas estético-expressivas e as religiosas-morais. Harvey
põe o dedo na ferida ao dizer que o projeto do Iluminismo já era, na origem,
uma “patranha”, na medida em que disparava um discurso redentor para o homem
com as luzes da razão, em troca da lenta e gradual perda de sua liberdade.
A partir dos anos 50 e, ocorrido agora o definitivo desencanto com a ciência
e suas tragédias (algumas delas), pode-se falar em um processo de sua desaceleração.
O nosso futuro virou uma incerteza. A razão, além de não nos responder
às grandes questões que prometeu responder, engendra novas e terríveis perguntas,
que chegam até hoje, vagando sobre a incerteza de nossos precários destinos.
Eu falaria, metaforicamente, do homem moderno acorrentado (o Prometeu)
ao consumo desenfreado de coisas (res) para compensar suas frustrações e angústias.
A vida se tornou absurda e difícil de ser vivida, face a esse “mal-estar” do
homem ocidental. Daí surgem as grandes doenças psicossociais de hoje: a frustração,
o relativismo e o niilismo, cujas sementes já estavam no bojo do Iluminismo,
a face sinistra de sua moeda. Não há mais nenhuma certeza, porque a razão não
foi capaz de dar ao homem alguns dos mais gratos dos bens: sua segurança e
bem-estar. Não há mais certezas, apenas a percepção de que é preciso repensar
criticamente a ciência, que nunca nos ofereceu um caminho para a felicidade, o
que provoca um forte movimento de busca de liberdade. O mundo está sem ordem
e valores, como disse Dostoievski: “Se Deus não existe, tudo é permitido”.
A incerteza do mundo moderno e a impossibilidade de organizar nossas
vidas levam Giddens a dizer que “não há nada de misterioso no surgimento dos
fundamentalismos, a radicalização para as angústias do homem”. Restou-nos o
refúgio nos grandes espetáculos, como os do Coliseu antigo: o pão e o circo, para
preencher o vazio da vida.
Na sua esteira de satanização social, o capitalismo engendra, então, a sociedade
de consumo, para levar o cidadão ao ópio do consumo (esquecer-se das
desilusões) nas “estações orbitais” dos shoppings, ou templos das compras, onde
os bens nos consomem e a produção, sempre crescente, implica a criação em
massa (ou em série) de novos consumidores. Temos uma parafernália de bens,
mas são em sua maioria coisas inúteis, que a razão / ciência nos deu; mas, em
troca, sofremos dos males do século, entre eles a elisão de nossa individualidade. Foi uma troca desvantajosa. É o que Campbell chama do sonho que gera o “signomercadoria”,
que nos remete ao antigo sonho do Romantismo, da realização dos
ideais.
Trocamos o orgasmo reprodutor instintivo pelo prazer lúdico-frenético de
consumir, sem saber que somos consumidos. Gememos de prazer ao comprar,
mas choramos de dor face à nossa solidão, cercados pela panaceia da ciência e
da razão, que nos entope de placebos, mas não de remédios para a cura dos
males dessa longínqua luz racional, que se acende lá no Iluminismo e que vem,
sob outras formas, até hoje. A televisão nos anestesia com a estética da imagem.
Para Baudrillard, ela é o nosso mundo, como o mundo saído da tela do grande
filme O Vidiota (o alienado no mundo virtual da tevê), cujo magistral intérprete foi
Peter Sellers.
Enquanto nos deleitamos com essa vida esquizofrênica e lúdica, deixamos
no caixa do capitalismo tardio (iluminista / racional) o nosso mais precioso bem: a
individualidade. Só nos sobrou a estética, segundo Jameson, ou a “colonização
pela estética” que afeta diferentes aspectos da cultura, como a estética, a ética, a
teórica, além da moral política.
A pós-modernidade talvez seja uma reação a esse quadro desolador. Bauman
fala em pós-modernidade como a forma atual da modernidade longínqua. Já
Giddens fala em modernidade tardia ou “modernidade radicalizada”: a cultura
atual. Por certo que a atual discussão sobre o pós-moderno implica um processo
de revisão e questionamento desse estado de coisas, em que o homem não passa
de um res nulius, como as matronas romanas.
A cultura moderna, ou pós-modernista, não tem uma razão para produzir
sua autocrítica, mas muitas razões, devido à sua prolongada irracionalidade do
“modo de vida global”, segundo Jameson. O que se pode dizer é que não há uma
razão, mas muitas razões para reordenar criticamente os descaminhos da pós-modernidade,
sem esquecermos que a irracionalidade continua nos rondando.
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/razoes-da-pos-modernidade8bs4bc7sv5e06z8trfk0pv80e.
Acesso em 21/01/18.
Discutindo uma mesma temática, há, como semelhanças entre os textos I (escrito
por um teólogo) e II (escrito por um professor), os seguintes aspectos, EXCETO: