UM EXEMPLO
Sírio Possenti
Publicado em 25 de novembro de 2016
Ref.: https://blogdosirioblog.wordpress.com/ [adaptado]
Uma amiga mexicana me mandou uma imagem: dois homens de terno (o
terno indica uma classe social que não é a popular) conversam. Um diz: – Me
corrigieran “Ler”. O outro responde: – No lo puedo “Crer”.
Não me dei conta, imediatamente, do que estava em jogo (tratando-se de
outra língua, a presteza nunca é muito grande). Perguntei detalhes (não vou me
imolar aqui…). Ela me deu o contexto, que é o seguinte:
Um Secretário de Instrución Pública falava a um grupo de alunos em uma
escola e os incentivava a “ler” (ele disse “ler” mais de uma vez). Ao final, uma menina o chamou de lado e lhe informou que não se diz “ler”, “pero ‘leer’”. Ele
achou graça, elogiou a aluna etc.
Depois disso é que surgiu a piada narrada no primeiro parágrafo, uma
montagem. A graça está no fato de que, na resposta (no lo puedo “crer”), ocorre o
mesmo fenômeno que ocorre em “ler”.
Que é o seguinte: em espanhol “culto”, as formas do infinitivo destes dois
verbos são “leer” e “creer”. O fato de o Secretário dizer “ler” indica, evidentemente,
que esta pronúncia está desaparecendo: “ler” e “crer”.
Observe-se que o fenômeno ocorre nos dois casos, o que favorece a tese
dos sociolinguistas que defendem que, nos mesmos contextos, ocorrem as mesmas variações (ou mudanças).
Observe-se, também, que esta mudança em curso no espanhol (do México, pelo menos), como o indica a fala do secretário, e depois, a montagem com
“crer”, já ocorreu no português.
Mesmo quem não conhece linguística histórica ou não tem um manual que
descreva as mudanças ocorridas pode ver o registro em dicionários como o
Houaiss, que fornece uma etimologia mínima (eu grifo leer e creer):
ler: cf. esp. leer, it. lèggere, fr. lire; ver le- e leg- e as remissivas aí citadas;
f.hist. 1258-1261 leer, sXIII liia, sXIII leer, sXIV leendo, sXIV lyi, sXV le, sXV leese,
sXV lia
crer: pelo lat. vulg. *credére > port. arc. creer; ver cred-; f.hist. sXIII creer,
sXIII creo, sXIV creyo, sXV crer, sXV creio
O fato histórico pode ser atestado. E a variação no espanhol deve ser bem
óbvia, pelo menos para muitos falantes. Se não fosse, a piada não funcionaria
(como não funcionou comigo).
Observe-se, também, por muito relevante, que uma aluna de uma escola
modesta aprendeu que se deve dizer “leer”.
É um fato conhecido que instituições diversas (a escola, a imprensa, a
própria escrita) retardam mudanças linguísticas. Pode-se apostar que, se essas
instituições não existissem, ou se sua política fosse outra, ninguém mais saberia
que as formas verbais em questão são (?) “leer” e “creer”. Aliás, para os falantes
menos letrados, e mesmo para letrados em situação informal, já não são essas.
A piada seria impossível.
O que seria lamentável.
Considere as afirmativas abaixo:
I. No enunciado “Não me dei conta, imediatamente, do que estava em jogo
(tratando-se de outra língua, a presteza nunca é muito grande).”, os parênteses foram utilizados para marcar um comentário do autor sobre o
enunciado anterior a eles. O mesmo segmento poderia ter sido marcado
por meio de travessão.
II. Em “É um fato conhecido que instituições diversas (a escola, a imprensa,
a própria escrita)”, os parênteses foram utilizados para isolar um segmento explicativo. O mesmo segmento poderia ter sido isolado por meio
de travessões.
III. Na passagem “O fato histórico pode ser atestado. E a variação no espanhol deve ser bem óbvia, pelo menos para muitos falantes. Se não fosse,
a piada não funcionaria (como não funcionou comigo).”, o enunciado entre
parênteses poderia ser suprimido sem alterar os sentidos do texto.
Está CORRETO o que se afirma em: