Obrigado por ligar. Sua ligação é muito importante para
nós. Se desejar serviços de instalação, tecle 1. Para
reagendamento de visita, tecle 2. Para verificação de
dados cadastrais, tecle 3. Para informações sobre plano
de pagamento, tecle 4. Para falar com um de nossos
atendentes...
Não, você não conseguirá falar com um de nossos
atendentes. Mas poderá ouvir, durante 25 minutos ou
mais, sucessos como “Moonlight Serenade” e o tema de
“Golpe de Mestre”.
Também, quem mandou você não ter em mãos o número
de seu cartão eletrônico, de sua matrícula no SAC
(Serviço de Atendimento ao Cliente), de seu cadastro na
Comunidade NetLig?
Muitas coisas mudam de forma e de nome, mas no
fundo permanecem iguais. A peregrinação que temos de
fazer de tecla em tecla é a mesma que, antigamente,
nos levava a passar horas nas filas de uma repartição
burocrática.
Cada tecla, afinal de contas, não passa de um guichê,
e o cartão que devemos ter por perto ou a senha que
se impõe saber de cor equivale ao papel, à guia, ao
documento que nos exigem e que nunca está a contento
do funcionário.
É a burocracia sem papel, a burocracia dos impulsos
eletrônicos. Claro, há vantagens: não é preciso sair
de casa e, enquanto você espera atendimento, com o
telefone encaixado entre o ombro e a bochecha, sempre
poderá fazer alguma outra coisa. Sugestões: pôr os
papéis em ordem na gaveta (você poderá encontrar
o cartão de crédito cujo desaparecimento tentava
comunicar); teclar alguma outra senha de acesso no
computador, se tiver internet banda larga (se não tem,
disque para nós hoje mesmo); alongar os músculos do
pescoço e da nuca; ou entregar-se a outras atividades
corporais cujo nome não seria conveniente declinar aqui.
De todo modo, a burocracia eletrônica segue os
princípios da antiga. Quanto mais a instituição ou a
empresa economizam, mais o usuário perde tempo. No
hospital público ou na assistência técnica da máquina de
lavar, sempre vigora a lei da seleção natural: eliminam-se
os fracos, para que só os mais fortes, ou os mais
desesperados, cheguem até o fim do processo.
Claro que, quanto mais procurado o serviço, maior a fila.
Se notamos tanta burocracia nas instituições públicas, é
porque seu acesso é universal. Em inúmeras entidades
privadas vemos a burocracia aumentar, justamente
porque passaram a ser procuradas pelo grosso da
população. Os planos de saúde particulares constituem
o maior exemplo disso, mas bancos e cartões de crédito,
cujo universo de clientes se ampliou muito, não ficam
atrás.
Experimento reações contraditórias quando vou a um
caixa eletrônico. Em comparação com a fila tradicional,
sem dúvida ganho tempo. Mas sinto que estou também
“trabalhando” para o banco. Passo a senha, digito,
confirmo, conto o dinheiro: eis que sou um novo
funcionário do caixa, trabalhando de graça, enquanto
algum bancário foi despedido em troca.
Tudo bem. Gasto menos tempo no banco. Mas diminuiu
também a minha impressão de perder tempo. Todo
trabalho, por mais mecânico que seja, faz o tempo
passar mais depressa do que a pura espera. Fala-se de
democracia participativa, mas a “burocracia participativa”
também deveria merecer os seus filósofos.
À medida que um serviço se generaliza, crescem as
possibilidades de fraude. Quando uma empresa, pública
ou privada, passa do âmbito de uma distinta clientela
para o universo multitudinário e turvo da humanidade
em seu conjunto, torna-se inevitável multiplicar as
precauções contra os indivíduos de má-fé; isso significa
mais burocracia.
O que é um antivírus, um firewall ou um anti-spam,
a não ser a burocratização do nosso computador?
Eu costumava usar um antivírus que tinha rigores de
fiscal de alfândega, parecia usar carimbos de Polícia
Federal em dia de operação-tartaruga toda vez que
se punha a examinar a mensagem que entrava e a
mensagem que saía do meu Outlook.
Acontece que o computador, como tudo o que tem
telinha (um caça-níqueis, uma TV, um videogame, um
caixa eletrônico) sempre oferece ao usuário algo de
lúdico, de viciante, de hipnótico.
Já a burocracia telefônica (volto a ela) é muito pior.
Seu maior pecado, a meu ver, está na confusão que
estabelece entre as categorias de tempo e de espaço.
Entre num desses sistemas de “tecle 5 se deseja isto,
tecle 6 se deseja aquilo...” e tente corrigir uma decisão
errada.
Os sistemas mais extensos e irritantes usam a
famigerada tecla 9 -”para mais opções”-, abrindo-se em
alternativas que, para serem conhecidas integralmente,
exigiriam a vida inteira. Tudo ficaria mais fácil, se o
sistema fosse visualizado no espaço, num esquema em
árvore, num organograma, num menu de website -ou
mesmo num mapa de repartição, com suas ramificações
em corredores, departamentos e guichês. No máximo,
ficaremos andando de um lado para outro.
O problema do “tecle isto, tecle aquilo” é que ele se
desenvolve no tempo, não no espaço. Somos forçados
a prosseguir em alternativas que será sempre mais
custoso reverter; avançamos em decisões tomadas no
escuro, como se navegássemos num fluxo betuminoso,
por rios e córregos cada vez mais estreitos, cada vez
mais espessos, carregados de todas as opções já feitas,
de todo o tempo acumulado e perdido naquela ligação,
sem muita esperança de que, na extrema ponta do
percurso, uma voz humana venha afinal falar conosco.
É assim que o sistema de ramais automáticos guarda
incômoda semelhança com nossa própria vida adulta;
tem algo de anacrônico, de auditivo, de analógico. Já
as telas da internet, organizadas espacialmente, com
seus cliques de mouse, seus compartimentos de todas
as cores, seus guichês planificados e seus pop-ups
imprevistos e festivos, são um modelo bem alegre em
que mirar. Desde que a conexão não caia de repente.
COELHO, Marcelo. Disponível em:< http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1703200416.htm>.Acesso em: 12 abr. 2015. (Adaptado)
As notações gráficas utilizadas no conjunto do texto
como um todo possuem seu uso corretamente explicitado
entre parênteses, EXCETO em