O mal invisível que vem de longe
No início, o perigo vinha do céu. Tempo da segunda guerra. À
noite, escuridão total nas cidades, para se precaver de
bombardeios dos alemães. Nenhum sinal de luz poderia
aparecer. A vigilância policial atenta. A escuridão, geral. Para
se acender uma lâmpada, necessário que ocorresse em local
fechado, para não deixar a cauda de fora. Muito ouvi essa
ladainha. Mas sou do tempo em que o perigo saía da sujeira
dos galinheiros, o mosquito danado provocando um enjoo
miserável, batizado pela alcunha de dengue, que tive, os
olhos virando, a parte do branco desaparecendo [...].
Sobrevivi.
Agora vem da boca, do contato, da secreção, passageiro de
avião, a pegar em um e contaminar centenas, e, assim,
sucessivamente, invadindo países e continentes, sem
precisar de passaporte, nem comprar passagem, nem de
reserva de hotel, escondido no passageiro, que se torna o
elemento a difundi-lo; as estatísticas diuturnamente a exibir
novos números, entre os afetados e os suspeitos, as
medidas sendo tomadas, o homem, finalmente, descobrindo
que o lugar mais seguro é a sua casa. Não é a bomba alemã
que faz medo, não é o galinheiro que exibe sujeira. O mal
evoluiu. Ficou invisível. [...]
Estamos, suspeitos, confirmados e assustados, no mesmo
barco, torcendo e rezando, para que o mal fique bem longe,
não dê as caras, vá embora usufruir de boas e eternas férias
em desertos de muito calor; e, se possível, em outros
planetas, já indo tarde, não precisando nem apagar a luz do
aeroporto, muito menos de abraços de despedidas. Por ora,
ouvido no rádio, olho nas mensagens que nos chegam,
conselhos de solidão que devem ser acatados, higiene total,
a começar pelas mãos, nada de reunião, de aglomerados, de
ambiente apertado. Ufa! Mais cedo ou mais tarde, passa. Aí
tudo volta a ser alegre, vestindo azul para a sorte mudar.
Enquanto isso, um amigo, que sempre viveu afundado no
pessimismo, concorda comigo. Então, num riso largo,
sentencia: quem sobreviver, conta a história. Cruz credo! Dei
o diálogo por encerrado.
(Adaptado. Revisão linguística. CARVALHO, V. S. O mal
invisível que vem de longe. Disponível em:
https://bit.ly/3dTCNuy. Acesso em: mar 2020)
Leia o texto 'O mal invisível que vem de longe' e, em
seguida, analise as afirmativas abaixo:
I. A expressão “Ficou invisível” faz referência ao mal
responsável pela contaminação. Como os vírus são seres
microscópicos, a contaminação não é vista a “olho nu”, o que
torna o “mal”, citado no texto, invisível.
II. O texto se configura numa narrativa construída em torno da
pandemia causada pelo COVID-19. Elementos que justificam
essa tese são apresentados em trechos como “Agora vem da
boca, do contato, da secreção, passageiro de avião, a pegar
em um e contaminar centenas, e, assim, sucessivamente,
invadindo países e continentes...”.
III. O texto elabora uma crítica à individualidade e ao
isolamento ocasionados pela pandemia relacionada ao
COVID-19. Isso fica explicitado em excertos como “Estamos,
suspeitos, confirmados e assustados, no mesmo barco,
torcendo e rezando, para que o mal fique bem longe...”.
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