O segredo da acumulação primitiva neoliberal
Numa coluna publicada na Folha de São Paulo, o jornalista Elio
Gaspari evocava o drama recente de um navio de crianças escravas errando
ao largo da costa do Benin. Ao ler o texto – que era inspirado , o
navio tornava-se uma metáfora de toda a África subsaariana: ilha à
deriva, mistura de leprosário com campo de extermínio e reserva de
mão-de-obra para migrações desesperadas.
Elio Gaspari
propunha um termo para designar esse povo móvel e desesperado: “os
cidadãos descartáveis”. “Massas de homens e mulheres são arrancados de
seus meios de subsistência e jogados no mercado de trabalho como
proletários livres, desprotegidos e sem direitos.” São palavras de Marx,
quando ele descreve a “acumulação primitiva”, ou seja, o processo que,
no século XVI, criou as condições necessárias ao surgimento do
capitalismo.
Para que ganhássemos nosso mundo moderno,
foi necessário, por exemplo, que os servos feudais fossem, à força,
expropriados do pedacinho de terra que podiam cultivar para
sustentar-se. Massas inteiras se encontraram, assim, paradoxalmente
livres da servidão, mas obrigadas a vender seu trabalho para sobreviver
Quatro ou cinco séculos mais tarde, essa violência não deveria
ter acabado? Ao que parece, o século XX pediu uma espécie de segunda
rodada, um ajuste: a criação de sujeitos descartáveis globais para um
capitalismo enfim global.
Simples continuação ou
repetição? Talvez haja uma diferença – pequena, mas substancial – entre
as massas do século XVI e os migrantes da globalização: as primeiras
foram arrancadas de seus meios de subsistência, os segundos são
expropriados de seu lugar pela violência da fome, por exemplo, mas quase
sempre eles recebem em troca um devaneio. O protótipo poderia ser o
prospecto que, um século atrás, seduzia os emigrantes europeus: sonhos
de posse, de bem-estar e de ascensão social.
As
condições para que o capitalismo invente sua versão neoliberal são
subjetivas. A expropriação que torna essa passagem possível é
psicológica: necessita que sejamos arrancados nem tanto de nossos meios
de subsistência, mas de nossa comunidade restrita, familiar e social,
para sermos lançados numa procura infinita de status (e,
hipoteticamente, de bem-estar) definido pelo acesso a bens e serviços.
Arrancados de nós mesmos, deveremos querer ardentemente ser algo além do
que somos.
Depois da liberdade de vender nossa força de
trabalho, a “acumulação primitiva” do neoliberalismo nos oferece a
liberdade de mudar e subir na vida, ou seja, de cultivar visões, sonhos e
devaneios de aventura e sucesso. E, desde o prospecto do emigrante, a
oferta vem se aprimorando. A partir dos anos 60, a televisão forneceu os
sonhos para que o campo não só
devesse, mas quisesse, ir para a cidade.
O requisito para que a máquina neoliberal funcione é mais
refinado do que a venda dos mesmos sabonetes ou filmes para todos.
Trata-se de alimentar um sonho infinito de perfectibilidade
e,
portanto, uma insatisfação radical. Não é pouca coisa: é necessário
promover e vender objetos e serviços por eles serem indispensáveis para
alcançarmos nossos ideais de status, de bem-estar e de felicidade, mas, ao mesmo tempo, é preciso que toda satisfação conclusiva permaneça impossível.
Para fomentar o sujeito neoliberal, o que importa não é lhe
vender mais uma roupa, uma cortina ou uma lipoaspiração; é alimentar
nele sonhos de elegância perfeita, casa perfeita e corpo perfeito. Pois
esses sonhos perpetuam o sentimento de nossa inadequação e garantem,
assim, que ele seja parte inalterável, definidora, da personalidade
contemporânea.
Melhor deixar como está. No entanto, a
coisa não fica bem. Do meu pequeno observatório psicanalítico, parece
que o permanente sentimento de inadequação faz do sujeito neoliberal
uma
espécie de sonhador descartável, que corre atrás da miragem de sua
felicidade como um trem descontrolado, sem condutor, acelerando
progressivamente por inércia – até que os
trilhos não agüentem mais.
(Contardo Calligaris, Terra de ninguém. São Paulo: Publifolha, 2002)
O verbo indicado entre parênteses deverá ser obrigatoriamente flexionado numa forma do plural para preencher de modo correto a frase: