Texto I
A era do exibicionismo digital
O que leva cada vez mais pessoas a abrir mão de sua privacidade e divulgar
detalhes da sua intimidade nas redes sociais, numa exposição sem limites e
repleta de riscos
"Ela não anda, ela desfila, é top, capa de revista. É a mais mais,
ela arrasa no look. Tira foto no espelho pra postar no Facebook"
O funk “Ela é Top”, de MC Bola, onipresente nas pistas brasileiras desde abril do
ano passado, descreve uma típica garota carioca, de formas, gestuais e vestuário
superlativos, que, não contente em chamar a atenção por onde passa, registra todos os
seus provocantes trajes em fotos e os posta nas redes sociais. Tamanho sucesso tem
explicação óbvia, além do ritmo pegajoso e hipnotizante. O hábito da musa de MC Bola é
adotado por milhões de pessoas, homens e mulheres que, desde a mais tenra idade,
numa viagem um tanto inconsequente e com altas doses de carência, diversão e
despreocupação, abrem mão da privacidade e compartilham sua rotina e intimidade nas
redes sociais, numa exposição sem limites e repleta de riscos.
[...]
Tudo o que é postado na rede deixa uma espécie de rastro virtual e pode colocar em
risco a privacidade do usuário. “As redes sociais montam um banco de dados de tudo o
que fazemos e as empresas vêm se aperfeiçoando nas tecnologias de monitoramento,
por isso é fundamental pensar em formas de se proteger durante a navegação”, diz
Silveira. Existem diversos riscos implícitos no simples ato de publicar uma informação
pessoal na rede. Sem perceber, os usuários acabam divulgando detalhes importantes
acerca de sua rotina. “Não é recomendável publicar que estamos saindo de férias, que a
casa ou o apartamento ficará sem ninguém”, afirma a especialista na área digital
Fernanda Leonardi. “Também não é aconselhável postar fotos com crianças com roupas
de praia. As imagens podem ser facilmente usadas por sites de pornografia infantil.”
Além disso, o retrato ou o comentário considerado engraçado hoje pode se tornar um
problema amanhã. Várias empresas olham o conteúdo do que os aspirantes a um
emprego colocam na internet e, dependendo do que está exposto, eles podem perder a
vaga. Outro componente importante é o cyberbullying. “As pessoas que publicam fotos
com frequência tornam a sua imagem pública e ficam vulneráveis”, alerta a psicóloga
Ana Luiza. “Muitos usuários perdem o controle sobre a sua imagem e não estão
preparados para administrar as consequências de uma agressão que pode vir de um
anônimo ou não.”
[...]
Revista Isto é, dez. 2013, p.61-65.
Texto II
Medialidade: império e religião dos meios
A internet surge não só como revolução, mas como nova religião com o
autoritarismo que lhe é próprio
Uma das características fundamentais de nossa época é o triunfo do que
podemos chamar de medialidade sobre o todo da experiência vivida. Dos circuitos
especializados ao senso comum, o que chamam de “mídia” nada mais é do que a
instituição que administra a medialidade, instituindo o que podemos chamar de império
dos meios. Esse império, contudo, não é apenas político e econômico, mas também
religioso. Nesse caso, não é de espantar que donos de igrejas sejam donos de redes de
televisão. Mais assustador, no entanto, é que qualquer imagem bem colocada, com a
retórica e o teatro convenientes, tenha o poder de ser o ídolo como “o caminho, a
verdade e a vida” para tantas pessoas. Há uma afinidade radical entre estes meios: da
igreja à publicidade, as vítimas da medialidade inconsciente são crentes mesmo quando
parecem pagãos.
Medialidade, em um sentido muito básico, é a categoria que serve para explicar
nosso convívio com os meios que são o lugar da linguagem: imagem, palavra ou tudo o
que, estando entre nós, permite nossas relações uns com os outros e com o mundo. Ela
inclui a comunicação e seus meios, considerando que não há comunicação sem meio de
comunicação. Seja a palavra falada, que se articula pelo meio da voz, ou a palavra
escrita, por meio do texto, ambas são “meios” quase naturais, mais do que apenas
“formas” de comunicação. Estando entre nós, meio é, ao mesmo tempo, forma e
conteúdo. É tanto o que se diz quando o como se diz. Assim, por exemplo, como a
expressão de amor que precisa ser dita de uma forma amorosa para que não surja a
contradição entre a forma e o conteúdo. Não posso dizer “eu te amo” fazendo violência
à pessoa que digo amar. A pergunta que devemos nos fazer hoje diz respeito ao
estatuto dos meios que organizam nossas vidas. Precisamos compreender os meios:
desde o livro que lemos à televisão que assistimos. Mas não apenas do ponto de vista do
conteúdo. É importante que haja uma compreensão sobre a forma desse meio. Assim,
qual a diferença entre ler um livro e ver televisão?
A internet como meio
Nosso tempo é o de um elogio radical a um meio bastante novo: a internet. Afora
suas vantagens como meio, ela se parece hoje com a igreja na qual quem não entra é
tratado como ateu, ou seja, como pária ou herege, alguém que não entendeu “a
verdade”. Porque a ideia de sociedade como lugar ao qual a internet pertence tem
perdido lugar na experiência concreta dos crentes para a ideia de que a sociedade
pertence à internet. É uma inversão tipicamente religiosa. Tendo transformado a vida
das pessoas a ponto de determiná-las, ela surge não apenas como uma revolução, mas
como a nova religião com o autoritarismo que lhe é próprio: quem não acredita no
mesmo que eu é herege e, como tal, é o inimigo que deve ser convertido ou eliminado.
A internet aparece como transcendência total. A própria vida após a morte, no sentido
de uma inversão, pois é na internet que nos tornamos espectros em cuja vida
acreditamos hoje muito mais do que em nossa vida concreta, corporal, atual e real.
Como meio, a internet é boa para todo mundo. Permite pagar uma conta sem
sair de casa, acelera a comunicação, transmite dados. Como fim, ela é deturpação da
experiência vivida, caminho direto para o céu da comunicação sem fim e sem fronteira.
Verdade é que ela libera os crentes das dores desse mundo, ou seja, deles mesmos e
sua consciência. Permite realizar desejos no campo virtual que nunca seriam no campo
do real.
Usuários despreparados são consumidos por ela no esquecimento do seu caráter
de medialidade. É o mesmo problema que temos com os outros meio de comunicação:
esquecemos que são meios e começamos a experimentá-los como se fossem fins em si
mesmos, mais importantes do que a própria vida concreta neles recalcada.
Comunicamo-nos uns com os outros, vivemos dos meios. A comunicação resta
intocada, bastando-se a si mesma. Nós, os pólos da comunicação, já não temos valor
nenhum.
TIBURI, Márcia, in. Revista CULT, ago. 2012.
Considerando o tema e a sua abordagem nos dois textos acima, chega-se à seguinte
conclusão: