A questão trata de liberdade de
imprensa e direitos da personalidade.
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL-CONSTITUCIONAL.
LIBERDADE DE IMPRENSA VS. DIREITOS DA PERSONALIDADE. LITÍGIO DE SOLUÇÃO
TRANSVERSAL. COMPETÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DOCUMENTÁRIO EXIBIDO
EM REDE NACIONAL. LINHA DIRETA-JUSTIÇA.
SEQUÊNCIA DE HOMICÍDIOS CONHECIDA COMO CHACINA DA CANDELÁRIA.
REPORTAGEM QUE REACENDE O TEMA TREZE ANOS DEPOIS DO FATO. VEICULAÇÃO
INCONSENTIDA DE NOME E IMAGEM DE INDICIADO NOS CRIMES. ABSOLVIÇÃO POSTERIOR POR
NEGATIVA DE AUTORIA. DIREITO AO ESQUECIMENTO DOS CONDENADOS QUE CUMPRIRAM PENA
E DOS ABSOLVIDOS. ACOLHIMENTO. DECORRÊNCIA DA PROTEÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DAS LIMITAÇÕES POSITIVADAS À ATIVIDADE
INFORMATIVA. PRESUNÇÃO LEGAL E CONSTITUCIONAL DE RESSOCIALIZAÇÃO DA PESSOA.
PONDERAÇÃO DE VALORES. PRECEDENTES DE DIREITO COMPARADO.
1.Avulta a responsabilidade do Superior Tribunal
de Justiça em demandas cuja solução é transversal, interdisciplinar, e que
abrange, necessariamente, uma controvérsia constitucional oblíqua, antecedente,
ou inerente apenas à fundamentação do acolhimento ou rejeição de ponto situado
no âmbito do contencioso infraconstitucional, questões essas que, em princípio,
não são apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal.
2.Nos presentes autos, o cerne da controvérsia
passa pela ausência de contemporaneidade da notícia de fatos passados, que
reabriu antigas feridas já superadas pelo autor e reacendeu a desconfiança da
sociedade quanto à sua índole. O autor busca a proclamação do seu direito ao
esquecimento, um direito de não ser lembrado contra sua vontade,
especificamente no tocante a fatos desabonadores, de natureza criminal, nos
quais se envolveu, mas que, posteriormente, fora inocentado.
3.No caso, o julgamento restringe-se a analisar a
adequação do direito ao esquecimento ao ordenamento jurídico brasileiro,
especificamente para o caso de publicações na mídia televisiva, porquanto o
mesmo debate ganha contornos bem diferenciados quando transposto para internet,
que desafia soluções de índole técnica, com atenção, por exemplo, para a
possibilidade de compartilhamento de informações e circulação internacional do
conteúdo, o que pode tangenciar temas sensíveis, como a soberania dos Estados-nações.
4.Um dos danos colaterais da “modernidade
líquida” tem sido a progressiva eliminação da “divisão, antes sacrossanta,
entre as esferas do ‘privado’ e do ‘público’ no que se refere à vida humana”,
de modo que, na atual sociedade da hiperinformação, parecem evidentes os
“riscos terminais à privacidade e à autonomia individual, emanados da ampla
abertura da arena pública aos interesses privados [e também o inverso], e sua
gradual mas incessante transformação numa espécie de teatro de variedades dedicado
à diversão ligeira” (BAUMAN, Zygmunt. Danos colaterais: desigualdades sociais
numa era global. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar,
2013, pp. 111-113). Diante dessas preocupantes constatações, o momento é de
novas e necessárias reflexões, das quais podem mesmo advir novos direitos ou
novas perspectivas sobre velhos direitos revisitados.
5.Há um estreito e indissolúvel vínculo entre a
liberdade de imprensa e todo e qualquer Estado de Direito que pretenda se
autoafirmar como Democrático. Uma imprensa livre galvaniza contínua e
diariamente os pilares da democracia, que, em boa verdade, é projeto para
sempre inacabado e que nunca atingirá um ápice de otimização a partir do qual
nada se terá a agregar. Esse processo interminável, do qual não se pode
descurar – nem o povo, nem as instituições democráticas -, encontra na imprensa
livre um vital combustível para sua sobrevivência, e bem por isso que a mínima
cogitação em torno de alguma limitação da imprensa traz naturalmente consigo
reminiscências de um passado sombrio de descontinuidade democrática.
6.Não obstante o cenário de perseguição e
tolhimento pelo qual passou a imprensa brasileira em décadas pretéritas, e a
par de sua inegável virtude histórica, a mídia do século XXI deve fincar a
legitimação de sua liberdade em valores atuais, próprios e decorrentes
diretamente da importância e nobreza da atividade. Os antigos fantasmas da
liberdade de imprensa, embora deles não se possa esquecer jamais, atualmente,
não autorizam a atuação informativa desprendida de regras e princípios a todos
impostos.
7.Assim, a liberdade de imprensa há de ser
analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O
primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da
liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de
ambos os valores.
8.Nesse passo, a explícita contenção
constitucional à liberdade de informação, fundada na inviolabilidade da vida
privada, intimidade, honra, imagem e, de resto, nos valores da pessoa e da
família, prevista no art. 220, § 1º, art. 221 e no § 3º do art. 222 da Carta de
1988, parece sinalizar que, no conflito aparente entre esses bens jurídicos de
especialíssima grandeza, há, de regra, uma inclinação ou predileção
constitucional para soluções protetivas da pessoa humana, embora o melhor
equacionamento deva sempre observar as particularidades do caso concreto. Essa
constatação se mostra consentânea com o fato de que, a despeito de a informação
livre de censura ter sido inserida no seleto grupo dos direitos fundamentais
(art. 5º, inciso IX), a Constituição Federal mostrou sua vocação
antropocêntrica no momento em que gravou, já na porta de entrada (art. 1º,
inciso III), a dignidade da pessoa humana como – mais que um direito – um
fundamento da República, uma lente pela qual devem ser interpretados os demais
direitos posteriormente reconhecidos.
Exegese dos arts. 11, 20 e 21 do Código Civil de
2002. Aplicação da filosofia kantiana, base da teoria da dignidade da pessoa
humana, segundo a qual o ser humano tem um valor em si que supera o das “coisas
humanas”.
9.Não há dúvida de que a história da sociedade é
patrimônio imaterial do povo e nela se inserem os mais variados acontecimentos
e personagens capazes de revelar, para o futuro, os traços políticos, sociais
ou culturais de determinada época. Todavia, a historicidade da notícia
jornalística, em se tratando de jornalismo policial, há de ser vista com
cautela. Há, de fato, crimes históricos e criminosos famosos; mas também há
crimes e criminosos que se tornaram artificialmente históricos e famosos, obra
da exploração midiática exacerbada e de um populismo penal satisfativo dos
prazeres primários das multidões, que simplifica o fenômeno criminal às
estigmatizadas figuras do “bandido” vs. “cidadão de bem”.
10.É que a historicidade de determinados crimes
por vezes é edificada à custa de vários desvios de legalidade, por isso não
deve constituir óbice em si intransponível ao reconhecimento de direitos como o
vindicado nos presentes autos. Na verdade, a permissão ampla e irrestrita a que
um crime e as pessoas nele envolvidas sejam retratados indefinidamente no tempo
– a pretexto da historicidade do fato – pode significar permissão de um segundo
abuso à dignidade humana, simplesmente porque o primeiro já fora cometido no
passado.
Por isso, nesses casos, o reconhecimento do
“direito ao esquecimento” pode significar um corretivo – tardio, mas possível –
das vicissitudes do passado, seja de inquéritos policiais ou processos
judiciais pirotécnicos e injustos, seja da exploração populista da mídia.
11.É evidente o legítimo interesse público em que
seja dada publicidade da resposta estatal ao fenômeno criminal. Não obstante, é
imperioso também ressaltar que o interesse público – além de ser conceito de
significação fluida – não coincide com o interesse do público, que é guiado, no
mais das vezes, por sentimento de execração pública, praceamento da pessoa
humana, condenação sumária e vingança continuada.
12.Assim como é acolhido no direito estrangeiro,
é imperiosa a aplicabilidade do direito ao esquecimento no cenário interno, com
base não só na principiologia decorrente dos direitos fundamentais e da
dignidade da pessoa humana, mas também diretamente do direito positivo
infraconstitucional. A assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em
ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica. O
ordenamento é repleto de previsões em que a significação conferida pelo Direito
à passagem do tempo é exatamente o esquecimento e a estabilização do passado,
mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar. Precedentes de
direito comparado.
13.Nesse passo, o Direito estabiliza o passado e
confere previsibilidade ao futuro por institutos bem conhecidos de todos: prescrição,
decadência, perdão, anistia, irretroatividade da lei, respeito ao direito
adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada, prazo máximo para que o nome
de inadimplentes figure em cadastros restritivos de crédito, reabilitação penal
e o direito ao sigilo quanto à folha de antecedentes daqueles que já cumpriram
pena (art. 93 do Código Penal, art. 748 do Código de Processo Penal e art. 202
da Lei de Execuções Penais). Doutrina e precedentes.
14.Se os condenados que já cumpriram a pena têm
direito ao sigilo da folha de antecedentes, assim também a exclusão dos
registros da condenação no Instituto de Identificação, por maiores e melhores
razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma,
conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos.
15.Ao crime, por si só, subjaz um natural
interesse público, caso contrário nem seria crime, e eventuais violações de
direito resolver-se-iam nos domínios da responsabilidade civil. E esse
interesse público, que é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do
processo penal, finca raízes essencialmente na fiscalização social da resposta
estatal que será dada ao fato. Se é assim, o interesse público que orbita o
fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta
penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último
suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas consumadas
irreversivelmente. E é nesse interregno temporal que se perfaz também a vida
útil da informação criminal, ou seja, enquanto durar a causa que a legitimava.
Após essa vida útil da informação seu uso só pode ambicionar, ou um interesse
histórico, ou uma pretensão subalterna, estigmatizante, tendente a perpetuar no
tempo as misérias humanas.
16.Com efeito, o reconhecimento do direito ao
esquecimento dos condenados que cumpriram integralmente a pena e, sobretudo,
dos que foram absolvidos em processo criminal, além de sinalizar uma evolução
cultural da sociedade, confere concretude a um ordenamento jurídico que, entre
a memória – que é a conexão do presente com o passado – e a esperança – que é o
vínculo do futuro com o presente -, fez clara opção pela segunda. E é por essa
ótica que o direito ao esquecimento revela sua maior nobreza, pois afirma-se,
na verdade, como um direito à esperança, em absoluta sintonia com a presunção
legal e constitucional de regenerabilidade da pessoa humana.
17.Ressalvam-se do direito ao esquecimento os
fatos genuinamente históricos – historicidade essa que deve ser analisada em
concreto -, cujo interesse público e social deve sobreviver à passagem do
tempo, desde que a narrativa desvinculada dos envolvidos se fizer impraticável.
18.No caso concreto, a despeito de a Chacina da
Candelária ter se tornado – com muita razão – um fato histórico, que expôs as
chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo da precária proteção estatal
conferida aos direitos humanos da criança e do adolescente em situação de
risco, o certo é que a fatídica história seria bem contada e de forma fidedigna
sem que para isso a imagem e o nome do autor precisassem ser expostos em rede
nacional. Nem a liberdade de imprensa seria tolhida, nem a honra do autor seria
maculada, caso se ocultassem o nome e a fisionomia do recorrido, ponderação de
valores que, no caso, seria a melhor solução ao conflito.
19.Muito embora tenham as instâncias ordinárias
reconhecido que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a
receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a
reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente,
não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado.
No caso, permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e
imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua
dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, como bem
reconheceu o acórdão recorrido, além do crime em si, o inquérito policial
consubstanciou uma reconhecida “vergonha” nacional à parte.
20.Condenação mantida em R$ 50.000,00 (cinquenta
mil reais), por não se mostrar exorbitante.
21.Recurso especial não provido.
(STJ – REsp 1334097/RJ, Rel. Ministro LUIS FELIPE
SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe 10/09/2013)
I. Não houve violação ao direito à imagem e à
dignidade porque o indissolúvel vínculo entre a liberdade de imprensa e o
Estado Democrático de Direito encontra na imprensa livre um vital combustível
para sua sobrevivência, por isso a mínima cogitação em torno de alguma
limitação da imprensa traz, naturalmente, consigo reminiscências de um passado
sombrio de descontinuidade democrática.
Houve violação ao direito à imagem e à dignidade da
pessoa humana, uma vez que foi violado o direito ao esquecimento do autor.
Incorreta afirmativa I.
II. A honra do autor foi atingida porque é
imperioso reconhecer o direito ao esquecimento como um dos direitos
fundamentais e da dignidade da pessoa humana. A passagem do tempo é exatamente
o esquecimento e a estabilização do passado, mostrando-se ilícito reagitar o
que a lei pretende sepultar com a reabilitação do condenado.
Correta afirmativa II.
III. Uma notícia fidedigna não agride a honra de
quem quer que seja pelo simples decurso do tempo. Assim, divulgar um fato
histórico, que expôs as chagas do País ao mundo, tornando-se símbolo da
precária proteção estatal conferida aos direitos humanos da criança e do
adolescente em situação de risco, contado de forma fidedigna não atinge a
imagem e o nome do autor.
Uma notícia, ainda que fidedigna, pode atingir a
honra de uma pessoa, que tem como direito fundamental, o direito ao
esquecimento.
Incorreta afirmativa III.
IV. O cumprimento da pena assegura à pessoa o
direito ao sigilo da folha de antecedentes, bem como a exclusão dos registros
da condenação no Instituto de Identificação, sendo que, em relação ao crime,
subjaz um natural interesse público, que tende a desaparecer na medida em que
se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso; e é nesse interregno
temporal que se perfaz também a vida útil da informação criminal, ou seja,
enquanto durar a causa que a legitimava. Após a perpetuação no tempo, implica a
estigmatização da pessoa.
Correta afirmativa IV.
A partir da análise, estão CORRETAS as
afirmativas:
A) I e III, apenas. Incorreta letra “A”.
B) II e IV, apenas. Correta letra “B”. Gabarito da questão.
C) II e III, apenas. Incorreta letra “C”.
D) III e IV, apenas. Incorreta letra “D”.
Resposta: B
Gabarito do Professor letra B.